[Nota: publicam-se unicamente os resumos dos artigos do n.º 52, disponível para aquisição na Livraria Almedina (link). A publicação integral será feita aproximadamente dois anos após a publicação em papel, ou seja, relativamente ao n.º 52, no final do primeiro quadrimestre do ano de 2026.]
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O Mundo Justo
“Sei que seria possível construir o mundo justo (…)
A Terra onde estamos – se ninguém atraiçoasse –
Proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino (…)
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo (…)”
Sophia de Mello Breyner Andresen, A forma justa
(in Cem Poemas Portugueses no Feminino)
Falar de abril e de liberdade é também falar dos direitos das mulheres.
O paradigma de família retratado no Código Civil de 1966 sofreu os ventos de mudança de abril, tendo as alterações então introduzidas consagrado o reconhecimento à mulher da plena capacidade civil.
Esse reconhecimento traduziu-se no fim de limitações legais várias, entre as quais o acesso das mulheres à magistratura, vedado pelo Estatuto Judiciário de 1962[1], e que foi admitido pelo Decreto-Lei n.º 251/74, de 12.06, em cujo preâmbulo se afirmou:
“É contrária aos princípios democráticos consagrados na legislação vigente qualquer discriminação baseada no sexo.
O presente diploma não é mais do que a expressão, num sector determinado, do início de reparação, que se deseja sistemática, não só implantada nas leis, mas também na própria sociedade, de uma injustiça histórica.”
Constituíram marcos históricos no caminho percorrido pelas mulheres na magistratura a nomeação, no ano de 1977, da primeira mulher juíza em Portugal, Ruth Garcês, a qual foi também a primeira juíza desembargadora, em 1993. Em 2004 foi nomeada a primeira juíza conselheira do Supremo Tribunal de Justiça, Laura Leonardo. Em 2019, Dulce Neto foi a primeira mulher a assumir a presidência de um Supremo Tribunal, o Supremo Tribunal Administrativo.[2]
Atualmente, o número total de mulheres na magistratura judicial, nas jurisdições comum e administrativa e fiscal, ascende à percentagem de 60,37%.[3]
Na magistratura do Ministério Público o número total de mulheres é de 68%[4], tendo sido nomeada, em 2012, a primeira mulher Procuradora-Geral da República, Joana Marques Vidal.
Nas demais profissões ligadas à justiça, o percurso das mulheres iniciou-se mais cedo, sob o advento do Decreto n.º 4676, de 19.07.2018, no qual lhes foi autorizado o exercício “da profissão de advogado, de ajudante notário e ajudante de conservador” e o “desempenho de funções de ajudantes de postos e das repartições do registo civil podendo desempenhar o lugar de oficiais do registo civil provisórios, (…) amanuenses e oficiais das Secretarias de Estado e mais repartições públicas, ou dos corpos administrativos”.
No entanto, só em 1990 foi eleita a primeira mulher Bastonária da Ordem dos Advogados, Maria de Jesus Serra Lopes, e apenas em 2002 foi nomeada a primeira mulher Ministra da Justiça, a Advogada Maria Celeste Cardona.
Em 2022, o número de mulheres advogadas cifrava-se em 56%[5].
Se recuarmos mais no tempo, constatamos que, ao longo dos séculos, por motivos de diversa ordem, não foram reconhecidos às mulheres direitos civis, políticos e sociais iguais aos dos homens, assim como lhes foi vedado ou restringido o acesso ao ensino e à cultura, pelo que só com muito esforço e coragem lograram algumas ultrapassar esses ingentes obstáculos[6].
Salienta Maria do Céu Pires[7] que “A história «oficial» é, como sabemos, não um registo imparcial do passado, mas a interpretação dos vencedores. (…)
também no campo filosófico as mulheres foram discriminadas e isso aconteceu sempre que a história da filosofia (e da ciência) deixou na sombra as mulheres que se destacaram na busca do conhecimento. Esse processo acontece ainda hoje, sendo bem visível ao nível académico e nos currículos escolares.
Deste modo, parece-me legítimo concluir que os caminhos da igualdade passarão inevitavelmente por uma outra leitura da História que tire da sombra tudo o que lá está esquecido. Porque, de facto, a História pode sempre ser escrita/lida de outro modo.”
A defesa da igualdade de direitos foi mais intensamente perseguida a partir do século XIX, em particular, com o movimento das sufragistas, que encabeçaram a luta pelo direito ao voto, a que se seguiram novos desafios, naquilo que se tem designado segunda e terceira vagas do feminismo.[8]
O princípio da proibição da discriminação em razão do sexo tem vindo a ser assumido em convénios multilaterais, destacando-se, no âmbito das Nações Unidas, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, aprovada em 1979, e a Plataforma de Ação de Pequim, adotada em 1995, na IV Conferência Mundial das Nações Unidas sobre as Mulheres.
O Plano Estratégico 2022-2025, aprovado pela Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Género e o Empoderamento das Mulheres – conhecida por ONU Mulheres[9] –, visa alcançar a igualdade de género, empoderar todas as mulheres e permitir-lhes o gozo pleno dos seus direitos fundamentais, integrando-se no quadro global da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.[10]
No âmbito do Conselho da Europa consta aquele princípio de não discriminação do art. 14.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e no seio da União Europeia está afirmado no art. 21.º da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais.
Importa ainda, nesta sede, e em conclusão, destacar a Estratégia Europeia para a Igualdade de Género (2020-2025), apresentada pela Comissão Europeia, e em cujos objetivos traçados pela sua Presidente Ursula Van der Leyen nos revemos inteiramente:
“Pretende-se com esta estratégia construir uma União na qual tanto os homens e as mulheres, como as raparigas e os rapazes, em toda a sua diversidade, sejam livres de seguir o caminho que escolherem na vida, tenham as mesmas oportunidades para prosperar e possam participar na sociedade europeia e liderá-la em igualdade de circunstâncias.”[11]
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O 25 de Abril e a Justiça é o tema da Revista Julgar n.º 52, incontornável no ano em que se comemoram 50 anos do movimento revolucionário que impulsionou também mudanças profundas na justiça e no judiciário.
Numa reflexão que pretendemos que constitua uma ponte entre o passado e o futuro, iniciamos a travessia com uma partilha pessoal, por parte de cada um dos membros do conselho de redação da Revista Julgar, sobre o 25 de abril, e que, no caso da Senhora Juíza Desembargadora Fátima Reis Silva, se faz pelo traço vigoroso que anuncia “O Povo saiu à rua”.
Partimos depois, no caderno Divulgar, pelo cálamo de Marco António de Aço e Borges, em direção aos tribunais políticos, marca de água do regime autoritário que abril derrubou.
Fica, assim, a porta aberta para, de seguida, já à luz da democracia, e no caderno Debater, traçar a evolução da jurisdição administrativa, com Carlos Alberto Fernandes Cadilha, dos meios alternativos de resolução de litígios nas áreas cível e comercial, com Jorge Morais Carvalho, e da justiça do trabalho, com António Garcia Pereira. João Luiz Madeira Lopes descreve o movimento revolucionário e aponta algumas das principais mudanças deste decorrentes, designadamente, a aprovação de uma nova Constituição.
No âmago do futuro que já é presente, José Joaquim Fernandes Oliveira Martins fala-nos de digitalização e de inteligência artificial, desenvolvendo de que forma esta realidade pode impactar o sistema de justiça.
Entrando, por fim, no setor do Judiciário, Ana de Azeredo Coelho analisa a evolução da governação do judiciário após o 25 de abril, descrevendo a composição e competências do Conselho Superior da Magistratura.
Manuel Soares percorre desenvolvidamente 50 anos de associativismo judicial nacional, realidade só possível com a liberdade trazida pela revolução, e José Igreja Matos reflete sobre a sua experiência pessoal, vivida ao longo do exercício de cargos internacionais no associativismo de juízes, no cenário europeu e num quadro mundial.
Por último, no caderno Julgar, João Athayde Varela aborda o complexo tema da deteção neurológica da mentira em contexto judicial, com ênfase no contexto dos depoimentos de menores em investigações por crimes de abuso sexual, e Marco António de Aço e Borges revisita o vetusto incidente de contradita sob o prisma da sua atualização.
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Com o propósito de poder contribuir para o debate livre e profícuo de ideias, bem como para o aprofundamento da vivência do direito e da jurisdição, aceitei, em 2020, o honroso convite para dirigir a Revista Julgar, que a Associação Sindical dos Juízes Portugueses, na pessoa do seu Presidente, o Senhor Juiz Desembargador Manuel Soares, então me endereçou.
Nessa viagem embarcaram comigo Joana Silva (Juíza de direito, Diretora Adjunta), Ana Cristina Lameira (Juíza desembargadora), António José Fialho (Juiz de direito), Fátima Reis Silva (Juíza desembargadora), Filipe César Vilarinho Marques (Juiz de direito), Francisco de Siqueira (Juiz de direito), Francisco Mota Ribeiro (Juiz desembargador), Miguel Raposo (Juiz de direito), Renato Barroso (Juiz desembargador), Ruben Juvandes (Juiz de direito), que ao longo destes anos foram sempre incansáveis na dedicação e na solidariedade.
Chegamos agora ao porto de destino, momento em que me cumpre agradecer, penhorada, à Associação Sindical dos Juízes Portugueses, por todo o inestimável e constante apoio, e aos membros do meu conselho de redação, pela amizade sincera e pela alegria partilhada de um projeto tão bonito e inspirador!
Sei que a Revista Julgar continuará a contribuir para construir um mundo justo!
Sónia Moura
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FALTA POESIA NA RUA
Sentia-se há algum tempo na rua
Um ténue sopro de mudança,
Que foi ganhando força e intensidade.
Naquela madrugada de Abril,
Nascia, enfim, a Liberdade há muito ansiada.
Com Ela, a Democracia
Procurava agora novas formas de maturidade e realização.
Como dizia Sophia A poesia está na rua.
Palavras que Maria Helena Vieira da Silva imortalizou num cartaz.
Quiçá um dos mais belos que a Liberdade inspirou.
Meio século passado,
A Liberdade e a Democracia enfrentam tempos árduos
Falta-lhes a Humanidade para a qual vivem
E de que dependem.
Nas ruas cada um passeia mais solitário,
Já nem consegue perceber que outros estão também por ali.
A pandemia enalteceu a distância entre amigos, família, a gente do dia a dia.
As guerras regressaram de forma e intensidade
Inimagináveis…indesejáveis.
Voltámos lentamente à noite e ao silêncio
Perante o outro e o Mundo.
No entanto, sob a capa do virtual
As vozes são ensurdecedoras e implacáveis.
Os recreios da escola sentem saudades
Das brincadeiras e gritarias das crianças;
Os jovens pouco ou nada sabem
Dos seus colegas ou das pessoas que com eles lidam,
Preferem o efémero e a ilusão das tecnologias.
Os professores perderam há muito o estatuto de Mestres;
Os anciãos são deixados à guarda de desconhecidos
Abandonados por aqueles a quem deram Vida.
Que tempo este em que a Poesia deixou de sair à rua!
Mas acredito que temos em nós a vontade,
A capacidade de a fazer renascer
Para caminhar, de novo, connosco.
Ana Cristina Lameira
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“Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre a mãos de uma criança.”
António Gedeão (Pedra Filosofal)
Para quem viveu o 25 de abril de 1974 sob o olhar de uma criança, a poucos anos de uma adolescência que viveria o período da rebeldia pós-revolução, celebrar meio século envolve também o desafio de mostrar a quem não viveu esses anos que nem todas as conquistas da democracia podem ser dadas como adquiridas ou inalteradas.
A igualdade entre homens e mulheres foi uma dessas conquistas, mas hoje ainda estão presentes formas escondidas de dificultar essa plena igualdade e, nalguns casos, até comprometer a sua integral realização.
A liberdade de imprensa e de expressão foi outra dessas conquistas, mas hoje vemos formas escondidas ou encapotadas de reduzir ou mesmo eliminar a possibilidade de exprimirmos certas opiniões, principalmente quando não estão alinhadas com certos poderes.
O voto universal e a liberdade de escolha dos representantes políticos foi igualmente uma conquista, mas o primeiro não tem sido muito universal no seu uso o que pode até comprometer a liberdade de escolha.
O exercício democrático do poder judicial foi também uma importante conquista, mas quem estará presente se a independência de julgamento e de decisão for colocada em causa de forma mais ou menos evidente, tal como tem sucedido noutros países que até fazem parte da União Europeia.
Agora que já não sou criança, para que a democracia se reinvente e o mundo pule e avance, o meu sonho é que os nossos filhos e netos percebam que essa tarefa também é deles e que as liberdades e a democracia exigem ser tratadas com muito carinho, tal como uma bola colorida entre as mãos de uma criança.
António José Fialho
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FALTA CUMPRIR-SE ABRIL
A democracia é uma reinvenção constante. Baseia-se no diálogo árduo e complexo entre todos os atores sociais, vai gerando consensos conjunturais, que exigem permanente renegociação e revisão. É, por isso, o único regime que se abre ao futuro. Não oferece respostas enganadoramente imutáveis. Exige de todos uma constante abertura ao confronto, para garantir que em cada momento o equilíbrio social e político corresponde ao mínimo comum que garante a menor insatisfação do maior número.
O abril de há cinquenta anos não nos devolveu apenas a liberdade, devolveu-nos o futuro. Olhar para o que falta fazer – na justiça como em todas as outras áreas – é a única forma de não nos deixarmos novamente enredar pelas vãs promessas de quem nos quer impor soluções definitivas e imutáveis.
Falta cumprir-se abril na formação e no sistema de inspeções dos magistrados, crescentemente formatados desde os anos 70 para a elaboração de extensos trabalhos académicos e não para a sintética resolução das questões que devem decidir.
Falta cumprir-se abril na organização da carreira dos magistrados, continuando a negar-se soluções disruptivas que permitiriam a distribuição pelas diferentes instâncias daqueles com as características mais adaptadas às especificidades de cada uma, em vez de impor aos magistrados a mudança de instância para poderem progredir na retribuição.
Falta cumprir-se abril no acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, cada vez mais transformado num posto honorífico de pré-reforma para os magistrados de carreira.
Falta cumprir-se abril na eleição do Presidente do STJ, que continua a ser uma réplica do conclave papal, sem regras eleitorais ou programas claros.
Falta cumprir-se abril quando deliberadamente se deixa a jurisdição administrativa e fiscal ao abandono, abrindo a porta às arbitragens privadas que custam milhões ao Estado e não são sujeitas a regras de escrutínio ou transparência democrática.
Falta cumprir-se abril no Ministério Público, que não conseguiu ainda compreender que o paralelismo da dignidade institucional não significa paralelismo organizacional, impedindo-o de desempenhar na plenitude o papel fulcral e único na Europa que poderia ter.
Falta cumprir-se abril na advocacia, quando permitimos que regras fundamentais num Estado de Direito que servem para proteger um advogado que defende um qualquer cliente, um trabalhador ou um empregador, um arguido ou uma vítima, sirvam também para proteger quem se dedica ao lobbying ou a “planeamentos fiscais” que apenas acentuam as desigualdades e minam a democracia.
Falta cumprir-se abril no acesso aos tribunais, com custos cada vez maiores para quem a eles tem de recorrer.
Falta cumprir-se abril quando não há mecanismos de prestação de contas da justiça que, garantindo a sua independência, permitam um escrutínio público da sua administração.
A melhor homenagem que podemos fazer àqueles que há cinquenta anos arriscaram as suas vidas na revolução é reconhecer que (ainda) não fomos capazes de construir um sistema de justiça à altura da coragem que tiveram para nos devolver o futuro.
Saibamos fazê-lo agora, nem que seja com meio século de atraso.
Filipe César Marques
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“ABRIL” NA VOZ DE AMÁLIA RODRIGUES
O Fado, mais do que um simples género musical, é a expressão maior do sentimento português. Longo foi o seu percurso histórico, desde que, há cerca de duzentos anos, nasceu e cresceu nos bairros populares de Lisboa, até ser declarado pela UNESCO, em 2011, como património imaterial da humanidade.
Amália Rodrigues é unanimemente reconhecida como a fadista que melhor soube expressar a nostalgia do Fado e transmitir toda a alma, vida e emoção que ele contém. A ela se deve uma notável renovação do repertório fadista, mercê do recurso a poetas e compositores que, sem afetar a essência matricial do Fado – antes lhe aportando um refrescamento que o catapultou para um reconhecimento global – lhe trouxeram novos versos e novas melodias. Um dos seus fados mais conseguidos, singelamente intitulado “Abril”, é um excerto adaptado do poema de Manuel Alegre “A Rapariga do País de Abril”[12] e foi musicado pelo talentoso compositor Alain Oulman.
Neste ano do cinquentenário do 25 de Abril serão, sem dúvida, realizadas diversas cerimónias, efetuadas múltiplas homenagens e proferidos inúmeros discursos alusivos à efeméride. Na transitoriedade do tempo que vivemos, contudo, e na dimensão fugaz de quem, circunstancialmente, usará da palavra para evocar o momento mais definidor da nossa história recente, vale a pena recordar, para memória futura, o sentir profundo da perenidade do “Abril” de Amália e a forma indelével como o cantou para a eternidade na sua majestosa voz[13]. Que seja a sua, mais do que todas as outras, a voz do nosso País de Abril que, cinquenta anos depois, celebra a Liberdade!
Habito o sol dentro de ti descubro a terra, aprendo o mar por tuas mãos, naus antigas, chego ao longe que era sempre tão longe, aqui tão perto. Tu és meu vinho. Tu és meu pão guitarra e fruto, meu navio este navio onde embarquei para encontrar, dentro de ti, o País de Abril.
E eu procurava-te nas pontes da tristeza cantava adivinhando-te cantava quando o País de Abril se vestia de ti e eu perguntava quem eras.
Meu amor, por ti cantei. E tu me deste um chão tão puro, algarves de ternura por ti cantei à beira-terra, à beira-povoe achei achando-te o País de Abril (bis).
Francisco de Siqueira
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25 DE ABRIL DE 2024
Para a geração imediatamente posterior ao 25 de abril de 1974 [a minha], a revolução esteve sempre muito presente e foi ecoando ao longo dos anos, em relatos de familiares, na escola [através de manuais e professores], nos media e nas recorrentes celebrações institucionais, numa ideia de comemoração daquele que é comummente retratado como um marco político e até civilizacional…
O “problema” dos marcos, seja no processo político, seja no civilizacional, é que pressupõem um antes e um depois, numa ideia de subida de nível ou passagem de fronteira, numa lógica de permanente e inevitável progresso ou mesmo evolução, em que não se concebe qualquer regresso ou involução, assim criando uma ilusão de não retorno ao passado.
A dimensão imagética dos marcos é particularmente útil quando percebemos que as conquistas que [anualmente] celebramos não são factos consumados ou dados adquiridos, estando cada vez mais frágeis e o retorno a um passado revisitado se mostra ao virar da esquina.
É hoje evidente para quem não tenha amarras partidárias ou interesses dessa índole que o contrato social emergente de abril só parcial e temporariamente foi cumprido, que as instituições em que assentam os checks and balances da república se foram deteriorando até se mostrarem uma caricatura do que já foram e que o poder político (executivo e legislativo) passaram as últimas décadas a governar ao ritmo do sound bite mediático e das próximas eleições.
As sucessivas e progressivas crises económicas e de finanças públicas, a degradação da educação, a incapacidade de gestão eficaz das empresas públicas e dos projetos de relevância nacional, associados aos anuais (e apresentados como inevitáveis) incêndios florestais, num caminho descendente que atingiu até o coração do estado providência emergente de abril, com o descalabrado do SNS, mostram como a revolução e o estado social e de direito daí emergente, apesar de celebrado, não foi cuidado e preservado.
Mas se o poder executivo e legislativo foram protagonistas nesta história recente, o poder judicial tem sido cúmplice, ao não agir com a celeridade e eficácia que se lhe impunha, enquanto garante último dos direitos que abril consagrou.
Apesar dos condicionamentos económicos e de meios a que foi sujeito pelos sobreditos ramos do poder – e ficando apenas pela mediática justiça penal – cabia ao poder judicial (aos seus Conselhos e Tribunais Superiores) e aos “agentes da justiça” (onde se destaca a Ordem dos Advogados) terem pugnado, em tempo e sede própria, pela existência de condições objetivas para cumprirem o seu papel, denunciando de forma pública e veemente a insuficiência de meios para investigação e resposta atempada, assim como a incapacidade de um sistema cujas leis processuais tornam impossível o julgamento de determinados tipos de crime.
Ao deixarem essa tarefa de denúncia e reivindicação, pública e consequente, para os sindicatos e associações dos profissionais do foro, tornaram tais matérias, essenciais ao Estado de Direito, um alvo fácil do discurso do corporativismo, com que foram sendo desmerecidas pelo poder político ao longo dos últimos anos.
É natural e consabida a revolta que facilmente se gera numa sociedade em permanente crise económica e social (a incapacidade de conseguir habitação é paradigmática) perante sucessivas situações de desbarato e prejuízo do erário público sem adequada e pronta investigação e reação das entidades competentes, sendo que a história não muito distante nos ensina o que sucede a estados democráticos que não reagem de forma consequente contra a corrupção e o crime económico.
Falhando as conquistas sociais, as instituições e o Estado de Direito produzidos pela revolução que cunhou o Portugal democrático, as invetivas populistas contra o mesmo e a sua incapacidade de fazer face às necessidades dos portugueses são terreno fértil para o seu declínio.
50 anos volvidos da revolução, nunca como agora foi mais premente lembrar abril e renovar os seus propósitos, instando o poder político que sairá das próximas eleições a cumprir com o seu espírito, assumir as suas responsabilidades e a criar as condições para que não venha a ser necessária uma nova revolução.
Joana Silva
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50 ANOS DO 25 DE ABRIL
Nasci depois do 25 de Abril.
Depois da “revolução”; antes do 11 de Março, do 25 de Novembro e da Constituinte que nos definiu como um “estado de direito democrático”.
A primeira geração de portugueses de um Portugal sem império, sem sonhos ou quimeras de grandeza e de missão. Sebastianismos e Quintos Impérios foram apagados da minha educação, e o novo desígnio de integrarmos a comunidade europeia ainda era só um slogan de uma canção…
Um país da minha infância com notícias no canal estatal de televisão de barracas e falta de saneamento, combate ao trabalho infantil, alcoolismo rural e toxicodependência nas cidades que enchia as prisões de jovens sem futuro.
A justiça e os tribunais etéreos e incólumes, distantes e anónimos, confiando a população na seriedade e prestígio das suas instituições e dos seus viris representantes, envergando o negro e escudados no jargão técnico, que se presumiam sérios e respeitados nas suas decisões.
Até que vieram as “crises da justiça”, as notícias sobre “casos”, a mediatização de cargos e funções e uma abertura que atraiu uma nova geração de juízes, já não apenas de espírito sacerdotal, mal pagos mas compensados pela elevação social que o cargo trazia.
Sim, já sou do tempo em que “ir para juiz” era sinónimo de entrar numa escola que queria formar magistrados com mais do que um saber técnico, com capacidade de ver e entender o mundo não apenas pelas sebentas mas de um modo “interdisciplinar”, disponível para a crítica e aceitando não ser “endeusado”.
Anos novos, nova mentalidade, a justiça no centro das discussões, na rua e na imprensa, e a procura de uma nova legitimidade para o poder dos tribunais e na aceitação das suas decisões. O ónus de uma nova fundamentação, a mudança da informática, a atenção mediática, a necessidade de uma nova linguagem e de uma comunicação, que ainda não chegou.
E a pressão do tempo… O tempo da justiça que não coincide com o tempo das pessoas, dos media, do mundo! Mas que é necessário, nas suas formalidades e garantias, no estudo e na reflexão, e na gestão de um volume de trabalho que é sempre muito, que é sempre desproporcionado à exigência própria e dos demais.
Que mudança, que revolução nestes 50 anos! E o que vai ser?
Seremos justos herdeiros e transmissores da liberdade que foi dada à minha geração? Num mundo sempre em mudança, que vai ficando cada vez mais igual, sente-se tensão e urgência em defender a liberdade.
A verdadeira, que permite e aceita a diferença, que recusa o pensamento único, disposta a ouvir o outro e a promover compromissos, que defende a expressão livre e sem temor das consequências, o respeito por todos e a atenção ao que é excepcional.
Os juízes, os tribunais, a Justiça, voltando e aprendendo com o que foi a revolução, com o que, como país soubemos tirar e ser, a partir do 25 de Abril e com o que foram estes 50 anos, temos o que precisamos para contruir um Portugal em que a Justiça o seja.
Para tanto, lendo e interiorizando os testemunhos desta edição.
Miguel Raposo
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A LIBERDADE DE ABRIL
Um mês antes, a meio de Março, o meu Pai contara-me, a mim e ao meio irmão, que tinha havido uma tentativa de golpe, que militares tinham largado de um quartel de as Caldas da Rainha e marchado para Lisboa, mas que tinha corrido mal e ainda não era desta que as coisas iam mudar.
Ainda criança, não estranhei a conversa.
Tinha-me habituado a situações um pouco estranhas, como saber que os meus Pais, por vezes, ouviam uma rádio à noite, muito baixinho, para que os vizinhos não se apercebessem, e sabia que eles não gostavam de quem estava à frente do país, pois diziam que não haviam liberdade para que as pessoas dissessem o que pensavam.
Por isso, quando chegou a madrugada que muitos esperavam, o dia inicial inteiro e limpo, onde emergimos da noite e do silêncio e livre habitámos a substância do tempo (Sophia de Mello Breyner Andresen), não pude deixar de me sentir frustrado quando os meus Pais abalaram para o Largo do Carmo e me deixaram em casa, com o argumento de que era muito novo.
Depois, foram os repetidos comunicados do MFA, aquele hino que haveríamos de ouvir muitas e muitas vezes nos meses seguintes e, já noite dentro, a apresentação da Junta de Salvação Nacional, com o discurso do Spínola, personagem que detestei desde que o vi, com aquele seu ar emproado, o sinistro monóculo, a voz arrastada e as inquietantes luvas pretas.
A seguir, o 1º de Maio de 1974, algo que aos meus olhos de menino foi qualquer coisa de espantoso e inesquecível, com a alegria das pessoas, as palavras de ordem, os gritos de contentamento, a promessa de liberdade mil vezes repetida, todos os sonhos de um povo espalhados, em massa, pelas avenidas de Lisboa.
E aquele caricato episódio, que ainda hoje recordo, de um homem, montado numa bicicleta, querer, por força, descer a Almirante Reis, quando todo um mar de gente a subia num movimento imparável.
O meu Pai repreendeu-o, com a espontaneidade genuína que sempre o caracterizou, e virando-se por nós comentou sorrindo, já se começam a movimentar, os do contra.
Depois, depois é história, com muitos movimentos, a favor e contra, num e noutro sentido, com os avanços e recuos, próprios de um processo revolucionário em curso que se segue a uma longa ditadura.
Hoje, 50 anos após tais acontecimentos, haverá, por certo, desilusões do que não se conseguiu fazer, todo um país que falta cumprir ao nível do das disparidades sociais, a igualdade de oportunidades e a necessidade de uma educação séria, uma saúde eficaz e uma justiça célere.
Abril era também isso.
Mas já não temos presos políticos, já não se torturam e matam pessoas apenas por pensarem de forma diferente, já não lápis azuis que não nos deixam ler certos livros e todos os filmes podem estrear em Portugal independentemente do seu conteúdo.
A liberdade.
A liberdade de pensarmos, de falarmos, de nos associarmos, de protestarmos,
Mesmo que não tenhamos razão.
A liberdade de escrever este texto.
Renato Damas Barroso
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O 25 DE ABRIL
Na celebração do dia de liberdade não resisto a fazer uma reflexão pessoal. Para quem nasceu alguns anos depois do 25 de abril ainda é difícil tratá-lo como um evento histórico. Connosco está sempre a sensação de ouvir falar incessantemente, pela geração que nos antecedeu, sobre algo que, por pouco, não presenciámos.
Somos privilegiados por ter nascido em liberdade, por crescer num ambiente de modernização nacional, de recuperação do tempo perdido, de emancipação feminina, de laicização da sociedade e de integração europeia. Em muitas famílias fomos a primeira geração a frequentar o ensino superior e a poder trilhar um caminho diferente daquele que parecia determinado pela nossa origem, região ou etnia.
Fomos testemunhas dos resquícios do Estado Novo patentes na reduzida alfabetização, no trabalho infantil, na propaganda imperialista e nas mentalidades conservadoras.
Mas fica também a inveja. A inveja de não ter vivido numa altura em que se lutava por liberdade, em que a atividade política era desafiante e perigosa. Palavras como “clandestinidade”, “resistência”, têm um inegável encanto romântico. Não vivemos o tempo em que deter certa publicação ou ler determinado livre podia ser um desafio à autoridade. Nas universidades escapou-nos o ativismo estudantil. Não assistimos a dias de revolução, contragolpe e a intervenções urgentes na rádio ou televisão.
A nossa geração viveu períodos de estabilidade, de funcionamento normal democrático, de sucessão regular de governos e de chefes de Estado.
A estas privilegiadas gerações suscitam-se desafios próprios dos períodos de marasmo, como seja o desinteresse na vida pública e o afastamento da atividade política.
No entanto, se há vantagem de ter um momento fundador da nossa democracia, um aniversário para celebrar, é ter um pretexto anual para refletir na saúde e vivacidade da mesma.
Ruben Juvandes
[1]Em cujo art. 173.º, n.º 1 se estabelecia que “Para exercer as funções de magistrado do Ministério Público é indispensável reunir os seguintes requisitos: (…) a) Ser cidadão português do sexo masculino”, com a nota de que, à data, a carreira de magistrado do Ministério Público era vestibular da carreira de juiz.
[2] Agenda da Reforma da Justiça – Uma Reflexão Aberta e Alargada do Judiciário, Nuno Coelho (coord.), Almedina, março 2023, p. 504.
[3] Ibidem.
[4] In https://smmp.pt/smmp-na-imprensa/lideranca-no-feminino-2/, consultado em 23.01.2024.
[5] In https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt/Paginas/Advogados_inscritos.aspx, consultado em 23.01.2024.
[6] Percorrendo a história, encontramos alguns nomes que, de facto, se elevaram, designadamente, Hipátia de Alexandria, filósofa, astrónoma e matemática (século IV); Marie Curie, Prémio Nobel da Física em 1903 e Prémio Nobel da Química em 1911 (1867-1934); Rosa Parks, ativista norte-americana que lutou contra a segregação racial (1913-2005); Simone Veil, sobrevivente do Holocausto e primeira mulher presidente do Parlamento Europeu (1927-2017).
[7] Mulheres (de) Coragem. Por um Mundo mais Justo, Edições Colibri, 2018, pp. 133-134.
Neste sentido, pergunta Linda Nochlin, Why have there been no great women artists? (Thames & Hudson). E na obra “Women who read are dangerous” (Abbeville Press Publishers, p. 13), Karen Joy Fowler avança, acutilante, “We women who read should take a moment, put down the book, this or any other, look around us. We are experiencing a rare period of triumph.”
[8] In https://pt.wikipedia.org/wiki/Feminismo, consultado em 23.01.2024.
[9] Estabelecida pela Resolução 64/289 da Assembleia Geral das Nações Unidas, tendo iniciado a sua atividade em 01.01.2011 (https://www.unwomen.org/en/executive-board, consultado em 23.01.2024).
[10] In https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N21/186/22/PDF/N2118622.pdf?Open Element, consultado em 23.01.2024.
[11] In https://commission.europa.eu/strategy-and-policy/policies/justice-and-fundamental-rights/gender-equality/gender-equality-strategy_pt, consultado em 23.01.2024.
[12] «30 Anos de Poesia», Publicações Dom Quixote, 2ª edição aumentada, 1997, p. 77-78.
[13] Disponível, no canal oficial «Amália Rodrigues», em https://www.youtube.com/watch?v=f1F1b 6d5ak8 (acesso em 2024.01.05).