O que é isso de o “povo querer”?
António Manuel Hespanha
“O Caleidoscópio do Direito”
José Gil deu-nos como património de auto-reflexão a “não inscrição” como descrição colectiva. Mas, simultaneamente, como apelo para escaparmos a essa maldição.
Escapar à “não inscrição” é mais uma vez o objectivo da Julgar, neste número dedicado à Reforma Judiciária. Pois este é um dos assuntos cruciais da nossa caminhada como Povo, como comunidade política, assunto que tentamos esquecer falando dele abundantemente, a “torto e a direito”, torto e direito.
Queremos inscrever, trazendo para o espaço público geral e para o específico do Judiciário o debate sobre a reforma do sistema de Justiça, que é actualmente beco sem saída, reforma sempre a caminho da “não reforma”, como refere o artigo de Conceição Gomes.
Debate, diálogo, que tenta alicerçar-se na palavra como comunicação, como compromisso com a realidade que exprime, como expressão da vontade de mudança, é ruptura no acessório e continuidade no essencial.
Debater no confronto/partilha/diálogo. Tribunais (no caleidoscópio das diversas visões que encerram: Juízes, Magistrados do Ministério Público, Advogados, Oficiais de Justiça) Universidade, Poder local.
Divulgar as experiências empenhadas dos protagonistas da reforma de 2009, as reflexões sobre as suas linhas de força, debilidades e obstáculos. Proporcionando contacto com os frutos da acção e do debate vividos nas comarcas-piloto (tão desconhecidos, como lamenta Maria Isabel Vieira). Propondo a análise, a crítica, o contributo de todos. Propondo o afastamento do “assobiar para o lado”, o confronto com a realidade, frágil, débil que seja.
Porque só o debate público sério, honesto, comprometido, pode iluminar a vontade de agir, definir os rumos, responder existencialmente à pergunta: «O que é isso de o “povo querer”?».
O Povo depositário de uma sabedoria de séculos, do sentido e sentir nosso, tantas vezes soterrados na ganga dos epifenómenos mediáticos e emudecido na vertigem da expressão constante, da verborreia que transforma o debate em monólogos simultâneos, a divulgação em marketing, esse novo nome da propaganda, e a procura da verdade em afirmação de ideologia.
Ou, nem isso, deixando-nos apenas a contabilidade como critério.
A esta realidade não escapa a Justiça Administrativa que, paulatinamente, vai sentindo também estes ventos de mudança. Neste número começaremos a levantar a ponta do véu de uma realidade que se antecipa. A seu tempo falaremos da reforma do Código do Procedimento Administrativo e do Processo nos Tribunais Administrativos, por ora trazemos questões relacionadas com os juízes e com o Ministério Público e com a responsabilidade do Estado administração e, sob determinada perspectiva, alertando para as consequências de uma actividade legislativa precipitada ou pouco ponderada.
Arriscamos terminar como começámos, pois de uma coisa estamos certos : o Povo pode não saber que justiça quer, mas sabe, com certeza, que justiça não quer.
Ana de Azeredo Coelho
Dora Lucas Neto