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“A invenção de hoje é o meu único meio de inventar o futuro.”
Água Viva, Clarice Lispector
Vivemos um tempo de desafio.
A 11 de março de 2020, o diretor-geral da Organização Mundial de Saúde declarou a Covid-19 uma pandemia, atento o número de casos da doença que se mostravam diagnosticados em todo o mundo. Passado mais de um ano, enfrentamos ainda dificuldades no enquadramento clínico da doença, em particular na aferição das suas possíveis sequelas, bem como na definição de um tratamento e vacina adequados, apesar dos muitos progressos, felizmente, já alcançados.
As medidas de contenção, marcadas pela restrição inusitada ao exercício de direitos fundamentais, com profundos reflexos nas dinâmicas familiares e no setor produtivo, tiveram também impacto nos tribunais e, de uma forma geral, na justiça.
A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, objeto de dez alterações, a última das quais titulada pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, introduziu ajustamentos de diversa ordem, designadamente, na tramitação dos processos judiciais e realização de audiências, através dos quais se pretendeu adequar o sistema de justiça à crise sanitária e económica.
Colocados na presença de novos e renovados problemas, somos chamados a fazer o seu levantamento e, sobretudo, a projetar soluções. Trata-se, não só, de gerir a complexidade vigente, em ordem à manutenção (possível) do funcionamento do sistema, como, essencialmente, de pensar o futuro.
A reflexão sobre os regimes legais convocados para a dilucidação dos problemas originados pela pandemia, no panorama jurídico e judicial, constitui uma importante ferramenta de trabalho, representando aquilo que nos propomos fazer neste número integralmente dedicado ao tema da Pandemia e do Direito.
Assim, no caderno Julgar, Luís Filipe Pires de Sousa debruça-se sobre a realização de audiências de julgamento à distância, através de meios tecnológicos, indagando se este circunstancialismo se repercute na formação da convicção do julgador, tendo presentes os fatores que são habitualmente considerados para avaliar a credibilidade do testemunho.
A propósito do tema dos direitos das crianças, José Barros enuncia um conjunto de questões fundamentais, ressaltando a testagem, vacinação e tratamento da criança, em caso de oposição dos pais; o convívio da criança com o progenitor não residente; e o (in)cumprimento da obrigação de alimentos pelo progenitor que ficou impedido de trabalhar ou viu os seus rendimentos reduzidos, por força das medidas restritivas impostas no âmbito do Estado de Emergência.
Bruno Mestre centra-se no problema da qualificação como acidente de trabalho ou como doença profissional da contaminação do trabalhador pelo vírus SARS-CoV-2 no contexto laboral, incluindo na sua dissertação os casos de teletrabalho.
O cenário de crise económica, decorrente da crise sanitária, conduziu Joana Domingues num amplo excurso sobre os desafios que se colocam aos Juízos de Comércio, desenhando os contornos dos regimes especiais criados nesta conjuntura e alertando para uma circunstância que se verificará também, acrescentamos nós, noutras jurisdições – o aumento da litigiosidade, leia-se, o incremento da pendência processual, que demanda, em adição, medidas de caráter não legislativo.
Miguel Lorena Brito elenca os mecanismos regulatórios suscetíveis de aplicação, no específico universo dos contratos administrativos, abordando as temáticas da exoneração da responsabilidade pela mora ou pelo incumprimento contratual, da modificação do contrato, da reposição do equilíbrio financeiro e da atribuição de uma compensação financeira.
O estado de exceção constitucional é convocado por Gonçalo de Almeida Ribeiro, no caderno Debater, desenvolvendo os seus dois enunciados fundamentais – a defesa proporcional da ordem constitucional e os limites categóricos ao poder de emergência -, numa visão panorâmica e de topo piramidal, a qual enquadra globalmente os regimes setoriais adotados nesta conjuntura.
Pedra axial da dinâmica do cumprimento contratual em contexto de crise, o instituto da resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias é percorrido por Nuno Pinto Oliveira, submetendo a escrutínio rigoroso cada um dos seus requisitos positivos e negativos, designadamente os conceitos de base do negócio objetiva e subjetiva e de anormalidade da alteração.
No caderno Divulgar, Damião da Cunha reflete sobre o tipo criminal da propagação de doença contagiosa à luz da atual pandemia, situando a sua análise no âmbito mais geral da saúde pública, em especial, na prevenção e contenção de doenças contagiosas e, sobretudo, de novos riscos para a saúde.
A finalizar, o tema da violência contra os idosos, imperativo nesta conjuntura e, aliás, em todas as conjunturas, é desenvolvido por Paula Ribeiro de Faria, sublinhando a circunstância da fragilidade física e, amiúde, também psicológica destas vítimas, associada à sua frequente dependência económica dos cuidadores, as colocarem numa posição particularmente vulnerável, justificando um olhar mais atento.
Por último, cumpre-me um agradecimento muito especial ao Conselho de Redação da Revista Julgar: Ana Cristina Lameira, António José Fialho, Fátima Reis Silva, Filipe César Vilarinho Marques, Francisco Mota Ribeiro, Francisco de Siqueira, Joana Silva, Miguel Raposo, Renato Barroso e Ruben Juvandes, pela construção partilhada, profundamente gratificante, desta edição.
Sónia Moura