Cerca de quatro anos após uma revisão que teve como pedra de toque o alargamento da especialização a todo o país, importa debater e refletir sobre as principais questões com que se deparam as diversas jurisdições.
Não cura esta JULGAR de analisar os prós e os contras da especialização. Entre o juiz renascentista e o juiz especializado num específico saber sempre encontraremos vantagens e desvantagens. O que é melhor para o sistema de justiça será um debate para outras águas.
O objetivo foi auscultar o estado de alma de tribunais de primeira instância com competência especializada (o que se conseguiu relativamente a quase todos, porque a extensão da revista não permitiu mais) e identificar, pela mão – e pelo verbo – de juízes que aí exercem funções, quais as questões que, na sua jurisdição, apresentam controvérsia relevante ou merecem particular cuidado e atenção. Na mensagem que dirigimos aos autores convidados a colaborar neste número – e que prontamente aceitaram, com grande generosidade – dizia-se, ipsis verbis, o seguinte: «a ideia geral do número é recolher, junto de cada um, (…) as questões que sentem serem mais importantes e que, por algum motivo, já deviam estar resolvidas, ultrapassadas, harmonizadas entre tribunais ou esclarecidas e ainda não estão (porque são diferentes as interpretações, a prática, a jurisprudência dos tribunais superiores, etc.), sendo que a sua superação é importante para o bom funcionamento da justiça nessa área e/ou para o trabalho do juiz. Espera-se que sejam identificadas essas questões, que se compreenda porque são importantes e como devem ser resolvidas, na opinião do autor».
Este diagnóstico transversal foi, a nosso ver, inteiramente logrado. Mas, curiosamente ou não, alguns dos problemas específicos das várias jurisdições implicam vasos comunicantes e uma visão global das jurisdições ou, pelo menos, daquelas em que as pontes jurídicas e pragmáticas se impõem. Este número revela-nos, precisamente, que a especialização não significou indesejável cristalização, pois resultam vivas a qualidade técnica de análise, a interligação das jurisdições e a noção apurada de harmonia do sistema.
De todo modo, no seu conjunto, os textos que ora se publicam delimitam o cerne da(s) controvérsia(s). Ficam, assim, perfeitamente identificados os principais nós górdios (na feliz expressão de um dos artigos publicados) que constituem os pontos quentes do quotidiano judicial, uns recentes outros antigos, originando jurisprudência por vezes pacífica, por vezes encrespada.
No caderno JULGAR, a palavra pertence à concorrência e supervisão, à propriedade intelectual, à instância local cível e à jurisdição de família e menores. Marta Campos assinala a complexidade do regime contraordenacional, bem como da litigância nos tribunais de concorrência e supervisão e aponta caminhos para o futuro que, necessariamente, deverão passar por uma simplificação e harmonização do regime contraordenacional no seu todo. Eleonora Viegas centra-se nos problemas que motivaram o regime da arbitragem necessária instituído pela Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro. Na jurisdição cível, Paulo Ramos de Faria (re)visita, com profundidade, o tema do ónus de impugnação a cargo do autor, traçando um regime jurídico coerente que permite compreender com grande rigor e precisão o sentido desse ónus, a razão de ser das preclusões e a função dos articulados, particularmente a réplica. Pedro Raposo de Figueiredo enfrenta o complexo tema da admissibilidade de uma decisão positiva quanto à residência alternada sem o acordo dos progenitores.
Para DEBATER, Rita Mota Soares debruça-se sobre os poderes dos tribunais da Relação na reapreciação da matéria de facto e a necessidade de uma maior harmonização no cálculo do dano biológico. Por sua vez, Joana Silva conduz os leitores por algumas encruzilhadas que emergem da lei e conduzem a interpretações díspares na jurisdição do comércio. Abrindo caminho na área criminal, Paulo Duarte Teixeira realça a mutação do regime penal adjetivo e substantivo, evidenciando as ruturas com princípios que se consideravam sagrados e, hoje, vão conhecendo erosão. Envereda, também, por discussões atuais a propósito dos pactos para matar, no domínio da pornografia infantil e registo de criminosos condenados por crimes sexuais contra menores. Ainda na mesma área, João Pedro Baptista traz-nos uma análise ampla e sistemática de algumas questões em aberto quanto ao conhecimento superveniente do concurso de crimes e o cúmulo jurídico de penas, recorrendo a exemplos casuísticos das diversas situações que se mostram ainda controvertidas na doutrina e na jurisprudência e apresentando tópicos para a respetiva solução. No campo da execução de penas, Joaquim Boavida traça a linha divisória entre as competências dos tribunais de condenação e do tribunal de execução de penas, num contexto atual de pendência de conflitos de competência, decorrentes de perspetivas diferentes do modelo que vigora em Portugal e de legislação que dá azo a interpretações flutuantes. Ana Cláudia Nogueira apresenta uma visão panorâmica das principais questões em que urge uma intervenção/clarificação legislativa na área da instrução criminal, apresentadas com rigor, coerência e foco prático.
Transitando para outras jurisdições, José Joaquim Martins põe em devida luz um conjunto de temas que têm gerado divisão interpretativa no âmbito do direito do trabalho, como sejam os acidentes de trabalho in itinere, a descaracterização dos acidentes de trabalho em casos de negligência grosseira do sinistrado, a contagem dos juros de mora no caso de condenação no capital de remição e, por fim, as variantes ou variações do conceito de retribuição. Luís Carvalho oferece um panorama geral sobre o processo executivo em Portugal, a intervenção que o juiz deve ter nesse âmbito, os estrangulamentos de que padece e os passos que têm que ser dados no futuro em prol de uma justiça executiva mais eficiente, que não esqueça os direitos dos cidadãos.
Por fim, no caderno DIVULGAR, apresenta-se aos leitores um importante texto de Higina Orvalho Castelo, no qual a autora expõe as principais questões que se suscitam a propósito dos contratos de swap – um texto de referência que complementa um outro, da mesma autora, já publicado na JULGAR Online (em “www.julgar.pt”).
Espera-se, mais uma vez, que a revista JULGAR sirva os seus propósitos e que corresponda às expectativas e necessidades dos seus leitores.
Tiago Caiado Milheiro
Nuno de Lemos Jorge