[Nota: publicam-se unicamente os resumos dos artigos do n.º 49, disponível para aquisição na Livraria Almedina (link). A publicação integral será feita aproximadamente dois anos após a publicação em papel, ou seja, relativamente ao n.º 49, no final do primeiro quadrimestre do ano de 2025.]
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“O que aconteceu, aconteceu. A água
Que puseste no vinho, não a podes
Já de novo deitar fora, porém
Tudo muda. Começar de novo
Podes fazê-lo no último fôlego.”
Bertolt Brecht, “Tudo Muda”, in Poemas
O continente europeu viu-se, de súbito, afetado por dois acontecimentos profundamente impactantes: a Pandemia declarada pela OMS em março de 2020 e a agressão da Rússia à Ucrânia, ocorrida em fevereiro de 2021.
Perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1960, Nikita Khruschev proclamava “O nosso século é o século da luta pela liberdade, o século no qual as nações estão a libertar-se do domínio estrangeiro. Os povos desejam uma vida digna de consideração e lutam por alcançá-la”.[1]
O mesmo ideal de liberdade, agora à luz de alegadas ameaças de extrema direita, serviu de fundamento ideológico à operação militar levada a cabo pela Rússia em território ucraniano.
A liberdade – valor emulado em todos os documentos internacionais de relevo, desde logo, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, nascida no rescaldo da Segunda Guerra Mundial -, é, na realidade, um frágil produto de equilíbrios precários.
A paz e a segurança são valores que pressupõem respeito mútuo e capacidade de diálogo, vetores ausentes no radicalismo intransigente que se encontra na origem dos conflitos; nas palavras de Voltaire, “quando a paz se apresenta aos homens, a intolerância forja as suas armas”.[2]
Existem, é certo, “horizontes culturais variados” à escala mundial, aspeto muito relevante no sistema de proteção de direitos humanos instituído pela Organização das Nações Unidas e que se pretende universal[3], circunstância que tem motivado o debate: “se a ideia de direitos humanos pode ser uma manifestação de solicitude, já a sua extensão generalizada a todo o universo de culturas do mundo pode denunciar superficialidade de compreensão e, portanto, uma indiferença “cosmopolita” pelas pessoas reais (neste caso, também, pelas culturas reais). Sendo, também, certo que o completo abandono da ideia de direitos humanos pode também significar a rendição da consciência moral a formas tribalistas de arrogância. Aqui, como diria Bauman: “se tiver dúvidas, pergunte à sua consciência”.”[4]
Entendemos, assim, essencial, a ideia matriz da dignidade humana, esteio dos direitos humanos e fundamentais, proclamada na Declaração Universal dos Direitos Humanos (art.º 1.º), no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art.º 10.º) e na Carta Europeia dos Direitos Fundamentais (art. 1.º), para além da referência em múltiplas Constituições nacionais, como a portuguesa (art.º 1.º).
Encontrada na confluência de perspetivas religiosas, morais, filosóficas e científicas, a dignidade da pessoa humana postula, na sua essência, a salvaguarda da integridade física e moral dos seres humanos, assumindo a sua plenitude “nas relações interpessoais de reconhecimento mútuo”.[5]
Por outro lado, um conflito bélico, ainda que geograficamente confinado, traz invariavelmente consigo, para além dos atos violentos em que o mesmo se traduz, outras consequências de longo alcance, sejam os deslocados, que procuram salvar as suas vidas e manter uma existência digna, com particular enfâse para as crianças, sejam os fenómenos criminais típicos das situações de maior vulnerabilidade pessoal criadas pela guerra.
Falar de tudo isto é, pois, falar de direitos humanos e fundamentais.
Iniciamos, deste modo, o nosso percurso com um desafiante “epílogo aos Direitos Humanos e Fundamentais”, do cálamo de Paulo Ferreira da Cunha.
Prosseguimos com abordagens complementares relativas às intervenções judiciárias internacionais em cenários de guerra, sendo a temática da interação entre a Convenção Europeia dos Direitos Humanos e o direito internacional humanitário, em particular no âmbito da proteção do direito à vida e do direito à liberdade e segurança, tratada por Maria de Fátima da Graça Carvalho, Agente do Governo Português junto do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos até setembro de 2022.
Beti Hohler, membro do Gabinete do Procurador junto do Tribunal Penal Internacional, discorre sobre o estatuto do Tribunal, a sua composição, as regras atinentes aos julgamentos, incluindo os meios de prova, e a sua jurisprudência, finalizando com uma visão sobre os desafios que se colocam a esta jurisdição internacional.
Almiro Rodrigues partilha depois connosco a sua vasta e rica experiência enquanto Juiz Internacional do Painel de Recurso da Secção de Crimes de Guerra do Tribunal da Bósnia Herzegovina e Juiz do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia, sustentando a via da cooperação entre as jurisdições penais internacionais e nacionais como modelo para as futuras relações do Tribunal Penal Internacional com os tribunais nacionais e como o melhor complemento do princípio da complementaridade que rege o Tribunal Penal Internacional.
A fechar o caderno Julgar, Rui Tavares Lanceiro propõe-nos uma nova leitura da liberdade de expressão face aos problemas da desinformação durante a guerra da Ucrânia, à luz de uma reflexão aturada sobre a “revolução digital” e os problemas que se colocam nesta sede à liberdade de expressão.
No caderno Debater, Ana Rita Gil analisa o instituto da proteção temporária, mecanismo de origem comunitária, questionando se esta solução adotada para o acolhimento e proteção dos refugiados da guerra poderá ser também usada para enfrentar o problema dos “movimentos migratórios massivos”.
Neste alinhamento, Luísa Oliveira Alvoeiro descreve a intervenção do Tribunal de Família e Menores em sede de acolhimento de menores não acompanhados em território nacional, a propósito dos refugiados da guerra na Ucrânia.
Pedro do Carmo procede a uma análise prospetiva do impacto da guerra na Ucrânia na justiça penal portuguesa, colocando o enfoque no crime organizado, tráfico de pessoas e tráfico de armas.
Encerramos com uma reflexão profunda, já no caderno Divulgar, sobre a temática clássica, mas sempre atual e renovada, da perda total de veículo e dos limites da indemnização, que surge enriquecida pela alargada abordagem jurisprudencial, permitindo a Ricardo J. Marques alcançar conclusões importantes neste domínio tão significativo da litigiosidade cível.
No momento em que escrevemos este editorial, infelizmente, a nossa realidade é ainda a guerra na Ucrânia, mas quem sabe se quando esta Revista chegar ao seu porto de abrigo, num último fôlego, tudo tenha mudado e estejamos a começar de novo…
Sónia Moura
(Janeiro de 2023)
[1] 50 Grandes Discursos da História, Edições Sílabo, 1ª ed., 2ª reimp., Lisboa, 2007, p. 154.
[2] Tratado sobre a Tolerância – Por ocasião da morte de Jean Calas, Relógio D´Água Editores, fevereiro de 2015, p. 141.
[3] VEER, Lionel e DEZENTJE, Annemarie, Direitos Humanos e Perspectivas Culturais, in https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000265904_por, p. 36 (consultado em 12.01.2023).
[4] HESPANHA, António Manuel, O caleidoscópio do direito : o direito e a justiça nos dias e no mundo de hoje, 2ª ed., Coimbra, junho de 2009, p. 517.
[5] HABERMAS, Jürgen, O Futuro da Natureza Humana – A Caminho de uma Eugenia Liberal?, Coimbra, 2006, p. 76.