O presente número da Julgar é dedicado ao Direito do Trabalho.
Não deixa de ser simbólico que seja o número imediatamente seguinte àquele dedicado ao 25 de abril e a Justiça, comemorativo dos 50 anos da revolução democrática. A jurisdição laboral foi porventura aquela na qual os ventos democráticos se fizeram sentir com mais intensidade, com a saída dos Tribunais do Trabalho da alçada do Ministério das Corporações, a inerente conquista de um lugar a par das demais jurisdições e a integração dos seus magistrados na carreira judicial comum.
Não se pense, porém, que o objetivo deste número é prolongar a comemoração do aniversário da democracia. Se as datas redondas e os aniversários servem para celebrar o passado, também devem servir para pensar o presente e projetar o futuro – deve ser essa, aliás, a sua principal função.
O Direito do Trabalho é talvez o ramo do Direito onde as tensões políticas e sociais de cada momento mais se fazem sentir. As diferentes leis e “reformas laborais” que dão corpo às opções do legislador são frequentemente ondas sísmicas que traduzem movimentos sociais e políticos profundos – e por vezes ainda ocultos – que o sismógrafo do Direito do Trabalho é o primeiro a registar.
No prefácio que escreveu para a obra coletiva Philosophical Foundations of Labour Law1, Harry Arthurs identifica as duas tendências clássicas que sempre enformaram as discussões filosóficas sobre o Direito do Trabalho: uma primeira, que caracteriza como idealista (e que compara com a alquimia), baseia-se na crença de que um dia se descobrirá a pedra filosofal (“justiça distributiva”, “não- -exploração”, “dignidade”, “cidadania”, “inclusão social”) que permitirá alcançar um mercado laboral justo e equilibrado, sendo o papel do Direito do Trabalho a procura dessa pedra filosofal; uma segunda, materialista (a que o autor chama “muscle and blood”), olha apenas para a relação de poder e a sujeição do trabalhador, vendo o Direito do Trabalho como um meio de legitimar e facilitar a resistência – que essa tendência reputa de justificada e inevitável – dos trabalhadores. Concluindo que nenhuma delas se mostrou capaz de dar respostas coerentes e satisfatórias à evolução da sociedade e da tecnologia, o que justificará a insatisfação de uma larga franja da população com os partidos tradicionae a deriva populista a que temos vindo a assistir nas democracias ocidentais, o autor exorta os defensores de uma e outra a esforçarem-se por desenvolver uma síntese: os idealistas refletindo sobre o que poderá suceder ao neoliberalismo e instilando nas teorias materialistas uma base sólida de valores e direitos fundamentais; os materialistas trazendo para as leis laborais uma perspetiva pragmática das relações laborais e assim contribuindo para uma verdadeira igualdade e justiça social.
O advento da economia digital e a crise das democracias que têm caracterizado as primeiras décadas deste século vieram abalar profundamente os alicerces do edifício clássico do Direito do Trabalho, lançados (solidamente, pensava-se até há pouco) nas décadas imediatamente posteriores aos dois conflitos mundiais que moldaram o mundo no século XX. Aquilo a que temos vindo a assistir no campo juslaboral não são apenas alterações pontuais, mas a tradução legislativa de uma verdadeira revolução política, social e económica.
Neste contexto, o estudo do Direito do Trabalho não pode ficar-se pela simples análise das modificações dos códigos e das leis, antes necessita de uma reflexão profunda que vá às bases, aos seus fundamentos.
Este número da Julgar, dando corpo aos princípios que nortearam a criação da revista, pretende ser um pequeno contributo para essa reflexão tão necessária. Nele se abordam questões tão variadas como a dos direitos dos trabalhadores enquanto direitos humanos, os novos problemas suscitados pela recentemente aprovada Agenda do Trabalho Digno – seja no que toca à transmissão de empresas ou estabelecimentos ou à regulação do trabalho em plataformas digitais, seja quanto à revogação do contrato de trabalho (tantas vezes utilizado para encobrir “despedimentos negociados”) –, a responsabilidade solidária pelas contra-ordenações laborais ou os efeitos da lei da amnistia na responsabilidade disciplinar laboral. Cumprindo o objetivo de divulgação de novos temas, incluímos também neste número dois artigos que abordam questões relacionadas com a assistência financeira às sociedades comerciais e com os desafios que a evolução das técnicas de inteligência artificial vem colocar ao nível dos direitos, liberdades e garantias e do direito probatório.
A todos os autores dos textos que se publicam nestas páginas, um profundo agradecimento pela sua valiosa contribuição para esta reflexão.
Filipe César Marques
Ruben Juvandes