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«(…) a minha liberdade é o estofo do meu ser. Estamos, pois, longe de reconhecer a liberdade no caso privilegiado do acto voluntário. Porque o acto voluntário, a decisão consciente de um gesto, de uma atitude, implica já uma escolha de móbiles em confronto, uma decisão para aquilo perante o qual vou optar.»
Vergílio Ferreira, O existencialismo é um humanismo (Da fenomenologia a Sartre)
A responsabilidade civil, importante fonte das obrigações, existe sempre que haja um responsável, um credor ou lesado e um dano a reparar. A obrigação tem origem direta na lei, sendo estranha à vontade das partes (contrariamente à responsabilidade no âmbito do cumprimento dos contratos), não obstante e ainda que o prejuízo tenha sido querido pelo responsável ou devedor.
Este foi o mote das I Jornadas a Sul do Direito Civil e Processual Civil, organizadas pela Direcção Regional Sul da ASJP e pela Delegação de Portimão da Ordem dos Advogados, com o apoio da Câmara Municipal de Lagoa (Algarve). O programa respeitante ao direito substantivo foi definido tendo em conta o tema da responsabilidade civil em vários aspetos da sua manifestação, nem todos pacíficos.
Os textos que se inserem no caderno DEBATER são o resultado das valiosas comunicações (parte delas) levadas a efeito nas Jornadas, que se realizaram, em Lagoa (Algarve), nos pretéritos dias 11 e 12 de outubro de 2019.
Pedro Romano Martinez coloca-nos interessantes questões acerca da responsabilidade civil no contrato de empreitada, da responsabilidade do empreiteiro e do seguro de responsabilidade civil, num valioso e detalhado texto.
Um tema delicado, nem sempre consensual, mas extremamente interessante, é proficuamente apresentado por André Gonçalo Dias Pereira, com uma perspetiva atual da responsabilidade civil em saúde e enfoque para a sensível temática do consentimento informado.
Por seu turno, a perda de chance, abordada sobretudo num contexto de responsabilidade civil por factos ilícitos, constitui um contributo de Patrícia Cordeiro da Costa sobre uma temática que está longe de ser pacífica, num artigo pormenorizado, com suporte em vasta doutrina e jurisprudência.
A responsabilidade civil do banco por operações não autorizadas no online banking, decorrente do novo regime de serviços de pagamento é trazido pela mão de Miguel Pestana de Vasconcelos, que explica com detalhe os princípios estruturantes da disciplina, sublinhando a intensa responsabilidade do banco no nosso ordenamento jurídico, com a qual se visa estabelecer a máxima proteção aos titulares de contas bancárias numa sociedade em que a moeda é esmagadoramente escritural.
Por fim, quisemos abordar o tema do bullying e da responsabilidade civil das escolas e dos pais/educadores familiares daí decorrente, temática pouca abordada, mas que constitui uma preocupação social premente, tarefa que coube a Bruno Oliveira Pinto, que lançou ideias e interrogações para reflexão.
Aos textos das I Jornadas a Sul juntam-se outros dois sob a mesma temática, que se encontram no primeiro caderno JULGAR, escritos por Filipe Aveiro Marques e por Cláudia Alexandra dos Santos Silva. No primeiro texto, o autor aborda a responsabilidade dos gerentes e administradores das sociedades comerciais por danos causados aos trabalhadores e a possibilidade e tipologia da responsabilidade delitual daqueles por esses mesmos danos, analisa a questão da responsabilização sem culpa e a relação entre este tipo de responsabilidade e o respeito por direitos constitucionalmente consagrados. O segundo texto centra-se no problema da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais sofridos, mediatamente, por pessoas próximas à vítima de uma lesão corporal não fatal, procurando contribuir para uma interpretação sistematicamente coerente e equilibrada dos artigos 483.º, n.º 1, e 496.º, n.º 1, do Código Civil.
Este número da Revista Julgar conta, ainda, com duas contribuições de Luís Miguel Caldas e de Luís Eloy Azevedo, que compõem o caderno DEBATER, com o qual se encerra este último número de 2020.
Luís Miguel Caldas empreende uma análise crítica da decisão judicial cível, tendo como pano de fundo o Novo Código de Processo Civil, olhando, principalmente, para o equilíbrio entre as exigências de tempestividade, por um lado, e a imperativa fundamentação factual e jurídica, por outro, pugnando por uma conceção heurística das regras processuais.
Luís Eloy Azevedo faz uma viagem história até ao processo instaurado a João Franco após a implantação da República – um caso pioneiro de “responsabilidade ministerial”, cravado nas fronteiras que separam os espaços da política e da justiça, ontem, como hoje, de difícil definição.
Se depender da nossa vontade e da nossa liberdade, as Jornadas a Sul do Direito Civil e Processual Civil voltam no ano de 2021, seguindo outra temática, não menos interessante. Esperando que tenha valido a pena, voltamos a querer contar com a vossa presença e participação.
O número 42 da Revista Julgar será sempre um número importante para nós, face à possibilidade de divulgação do projeto em epígrafe e dos valiosos contributos prestados por todos os convidados, e simbólico, pois encerra, por vontade do próprio, as funções do colega Nuno Lemos Jorge, como diretor da mesma. Sabemos o brilhante e empenhado trabalho que ao longo destes anos levou a efeito e, por isso, a última palavra é de agradecimento sem que, pela sua justeza, nos seja permitida qualquer opção de a omitir.
Sandra dos Reis Luís
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Escrevo estas linhas em setembro de 2020, para serem lidas nos últimos dias deste ano.
Cheguei à Revista em 2010 e tive a oportunidade única de ser o seu diretor adjunto (2015-2016) e diretor (2016-2020). Com este número 42, regresso ao papel singular de leitor fiel, após uma década, tempo redondo, propício a ciclos. Assim completei o meu.
Sair é o resultado de uma vontade prevalecente, que não deve confundir-se com uma vontade unívoca e sem ambiguidades. Se o desejo de fazer o que não cheguei a conseguir e a satisfação por ter conseguido honrar o encargo recebido me seduziram para compromisso mais demorado, a consciência de ter alinhado a revista com os objetivos principais que para ela imaginei mostrou-me que era boa altura para deixar de o fazer – na dúvida entre o risco de cristalização e a oportunidade de progressão, a escolha deve ser, e para mim foi, simples.
Nada fiz sozinho, porém, muito menos do nada. A Revista Julgar é fruto coletivo de José Mouraz Lopes, José Igreja Matos, António José Fialho, Dora Lucas Neto, Fátima Mata-Mouros, Fátima Reis Silva, Filipe César Marques, Francisco de Siqueira, Francisco Moreira das Neves, Frederico Branco, Joana Costa, Joaquim Gomes, José Eusébio Almeida, José Tomé Carvalho, Margarida Quental, Mariana Coimbra Piçarra, Marta Cavaleira, Paulo Duarte Teixeira, Paulo Ramos de Faria, Pedro Soares de Albergaria, Raquel Prata, Renato Barroso, Rui Reis, Teresa Freitas, Tiago Caiado Milheiro e Sónia Pereira, de todos os coordenadores das edições em papel e de todos os autores.
À nova diretora, cujas qualidades humanas e profissionais admiro há tanto tempo quanto levo na magistratura, só posso desejar que faça melhor do que eu e que se sinta, nestas funções, pelo menos tão realizada e feliz como o antecessor.
No mais, as palavras que importam não são as minhas – aos leitores, razão primeira e última da Revista Julgar, interessam outras.
Nuno de Lemos Jorge