1. Após a sua 4.ª edição, as Jornadas Açorianas de Direito constituem-se já como um referencial no panorama dos encontros de discussão de temas jurídicos de ponta a nível nacional. A JULGAR vem estando desde a primeira hora associada a este evento bianual, tendo-lhe já dedicado os n.ºs 12, 21 e 25. As IV Jornadas decorreram em Ponta Delgada, nos dias 10 e 11 de novembro de 2016, desta feita dedicadas ao tema geral d”Os Movimentos Atuais de Criminalização e de Descriminalização”. Debateram-se assuntos tão diversos como a recente criminalização dos (assim designados) “maus tratos a animais de companhia”, a sucessiva ampliação das incriminações (e elevação de penas) no âmbito do direito penal sexual, o estado da arte em matéria de morte assistida, as fragilidades do discurso criminalizador da corrupção, as margens de descriminalização no contexto do tráfico de drogas e os avanços e recuos do chamado “modelo português” de descriminalização do consumo de substâncias estupefacientes, bem ainda como as sempre tão atuais quanto controversas problemáticas ligadas à tensão entre o segredo de justiça e os direitos individuais ou entre aquele e a liberdade de expressão ou entre esta e alguns direitos pessoais, mormente a honra, o bom nome e a intimidade da vida privada. É de tudo isto que se cura no caderno DEBATER do presente número da JULGAR (o trigésimo segundo), no qual se publica a maioria das comunicações apresentadas ao auditório (infelizmente, não todas). À margem trata-se ainda do conceito de pena, numa perspetiva que a imbrica na proteção de bens jurídicos e o afasta das conceções que a funcionalizam à (mera) proteção de normas.
2. Relativamente ao temário da corrupção, José Mouraz Lopes debruça-se sobre as fragilidades do discurso criminalizador daquela realidade sociológica, oscilante entre o paternalismo e a ineficácia. Descreve de modo desassombrado a trajetória populista que contaminou o sistema penal e a expressão que isso vem tendo nas políticas penais anticorrupção, sem nenhuma conexão com a eficácia. Inês Fernandes Godinho analisa os matizes da “eutanásia” e questiona se haverá necessidade de uma intervenção legislativa para despenalizar a morte assistida em Portugal, seja por haver situações não tuteladas pelo direito, seja por não deverem permanecer num espaço livre de direito. Separa águas quanto ao substrato ético da proteção da vida, que não deverá significar uma negação da autodeterminação do próprio titular do bem jurídico e enuncia critérios apertados para a (eventual) consagração normativa da morte assistida. Sobre a recente tutela penal concedida aos maus tratos a animais de companhia e o conflito dessa intervenção político-criminal com os princípio da dignidade e da necessidade da pena discorre criticamente Susana Aires de Sousa. Para ilustrar a sua tese traz liça Argos, o cão de Ulisses, que ele próprio criara, mas que dele nunca tirou proveito, pois antes disso partiu para a sagrada Ílion. Com essa imagem de fundo, expõe a intensa ligação que, de há muito, se estabelece entre o ser humano e o ser animal, questionando se Argos será merecedor de proteção jurídica, concluindo que não necessariamente de natureza penal. Na área do tráfico e consumo de substâncias estupefacientes, em boa medida determinada pelo direito internacional convencional, Eduardo Maia Costa discorre, em registo crítico, sobre a matriz proibicionista que marca o compasso dos direitos nacionais por todo o mundo, eivada aquela das ideias de limpeza moral e da guerra total às drogas, ressaltando a arejada inovação encetada em matéria de consumo com a Lei n.º 30/2000, de 29 de novembro. Por seu turno Francisco Teixeira da Mota e José António Barreiros dedicam-se às dimensões da liberdade expressão (o primeiro) e do segredo de justiça (o segundo) e os direitos pessoais respetivamente conflituantes. Teixeira da Mota sublinha a natureza deveras estruturante da liberdade de expressão em qualquer sociedade desenvolvida, pois só a circulação livre de ideias impele ao progresso. José António Barreiros, enfrentando a vexata quaestio da tutela do segredo de justiça, problematiza o seu efetivo alcance, concluindo que na ponderação de todos os valores em causa melhor se preservaria o prestígio do Direito penal retirando a violação do segredo do catálogo dos crimes. Noutro registo, bem diverso, sobre os aspetos caracterizadores da pena criminal, que vão do sofrimento decorrente da limitação de direitos fundamentais, passando pelo carácter hetero-imposto, reflete André Lamas Leite, problematizando ainda os desafios que as neurociências colocam ao Direito penal. Cláudia Cruz Santos lança o seu olhar sobre o tema atual e relevante dos prazos de duração máxima do inquérito, sustentando que se trata de um prazo perentório e que a sua sindicância cabe nas competências do juiz de instrução. E, pelo seu significado contextual e desafios lançados à comunidade judiciária em matéria que é (também) da sua responsabilidade (a elevada taxa de reclusão nos Açores), dá-se à estampa o texto da intervenção do Presidente do Governo da Região Autónoma dos Açores na sessão de abertura das IV Jornadas Açorianas de Direito.
3. Continuando na mesma linha jurídico-penal, publicam-se, no caderno JULGAR, quatro artigos de grande interesse e alcance prático. Manuel Soares reflete a propósito da regra da proibição de desfavorecimento do arguido em consequência do silêncio em julgamento, mais concretamente sobre a questão controversa das ilações probatórias desfavoráveis, sem perder de vista a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e a jurisprudência dos tribunais superiores em Portugal, deixando-nos pistas de reflexão sobre aspetos conexos para os quais não há uma resposta inequívoca. José António Rodrigues da Cunha traz-nos um tema vizinho do anterior, centrado também na relevância dos comportamentos do arguido no processo penal: a confissão e o arrependimento no sistema penal português. João Conde Correia centra a sua análise no regime do confisco não baseado numa condenação, recorrendo a experiências de direito comparado logo no Código Penal de 1982 e descrevendo a evolução desta figura no direito português, até à recente Proposta de Lei n.º 51/XIII. desenvolveu-se com a reforma do Código Penal (operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março) e consolidou-se com a criação de um regime de perda do património incongruente (artigo 7.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro). As recentes alterações mantiveram o paradigma, mas ainda não esgotaram as suas virtualidades. Por sua vez, Duarte Alberto Rodrigues Nunes escreve sobre a admissibilidade da obtenção, diretamente pelas autoridades, de dados de localização por meio de sistema GPS à luz do direito processual penal português, debruça-se sobre as divergências doutrinais e jurisprudenciais nessa matéria, analisa o tema no direito comparado e na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, traça o essencial do respetivo regime jurídico (de jure condito) e formula propostas (de jure condendo).
4. Dois artigos com particular interesse encerram este número da JULGAR, no caderno DIVULGAR, para além do núcleo dedicado ao direito penal e ao direito processual penal. Margarida Silva Pereira, a propósito da decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (Tribunal Pleno) de 24 de janeiro de 2017, proferida no caso Paradiso et Campanelli c. Italie, apresenta um estudo sobre o conceito de vida familiar na jurisprudência daquele tribunal, face aos fenómenos do turismo reprodutivo e da maternidade de substituição, procurando apontar aspetos que podem ter ficado na sombra daquela decisão. Por fim, Luís António Noronha Nascimento centra a sua análise no artigo 183.º, n.º 5, da Lei da Organização do Sistema Judiciário, na redação introduzia pelo artigo 2.º da Lei n.º 40-A/2016, de 22 de dezembro, na qual se prevê que a perda dos requisitos exigidos para o provimento em certos juízos determina que o lugar seja posto a concurso no movimento judicial seguinte. Questiona a compatibilidade desta solução com o princípio da inamovibilidade do juiz, enquadra historicamente o regime de inamovibilidade e descreve experiências de direito comparado. Assinala, ainda, os principais riscos (futuros) decorrentes da alteração legislativa, designadamente quanto ao estatuto dos juízes de tribunais de primeira instância e ao acesso aos tribunais superiores.
Continua vivo o espírito de discussão e reflexão crítica que há uma década anima a Revista e lhe dá sentido. Que assim o sintam os nossos leitores.
José Francisco Moreira das Neves
Nuno de Lemos Jorge