1. Transcorrido o primeiro ano de vigência da nova organização judiciária, é tempo de fazer o respectivo balanço. Um balanço necessariamente provisório ou contingente, enquanto narrativa de um fenómeno social e juridicamente complexo, situado numa fase de evolução ainda incipiente, a qual foi marcada por vicissitudes anómalas, se não mesmo irrepetíveis. Mas nem por isso um balanço espúrio ou de reduzida utilidade. Essa utilidade surpreende-se no relato histórico dos factos e da percepção que deles tiveram os seus autores e testemunhas, bem como na reflexão sobre o estado a que nos conduziu o caminho já percorrido e sobre as perspectivas futuras desse percurso. Parafraseando Miguel de Cervantes, «a história é émula do tempo, repositório dos factos, testemunha do passado, exemplo do presente, advertência do futuro».
Foi exactamente esse desafio que dirigimos aos diversos autores deste n.º 27 da Julgar: uma reflexão sobre a mais recente reforma da organização judiciária portuguesa, sobre o que foi feito, o que foi alcançado, o que falta fazer e o que ainda é possível almejar, com um enquadramento mais ou menos abrangente (desde um plano geral até um grande plano ou mesmo um plano detalhe), mas sempre na perspectiva de um determinado grupo social ou profissional e dos respectivos interesses.
Cientes de que a reforma da organização judiciária é susceptível de análise e escrutínio sob diferentes perspectivas e à luz de interesses diversificados, que se entrecruzam e, muitas vezes, se opõem, cientes igualmente de que a reforma convoca as mais variadas questões, umas de natureza mais técnica, outras de natureza mais política ou ética, a nossa primeira preocupação foi a de nos aproximarmos de uma visão de 360º. Com esse desiderato, procurámos incluir na lista de autores o leque mais variado possível de stakeholders do judiciário, como se diz na moderna linguagem da gestão.
Como resultado dessa preocupação, esta edição conta, desde logo, com a colaboração de representantes dos órgãos de gestão dos serviços de justiça, com responsabilidades tanto no plano central como no local, provenientes dos três “ramos” que integram a administração daqueles serviços: a judicatura, o Ministério Público e o executivo.
Conta igualmente com a colaboração da associação sindical dos juízes portugueses, bem como de uma magistrada judicial, uma funcionária de justiça e um advogado, sendo certo que os textos destes reflectem análises pessoais que apenas vinculam os próprios.
Poderá estranhar-se a ausência de qualquer texto subscrito por representantes do Ministério Público, em contradição com o que se anunciou. Deixa-se apenas a nota de que essa representação foi procurada aos mais alto nível, à semelhança do que foi feita relativamente à judicatura, através de convites endereçados ao Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e do Conselho Superior da Magistratura e à Sra. Procuradora-Geral da República, ambos aceites, sem que, todavia, o texto desta última tivesse sido remetido.
Foi também solicitada a colaboração da academia e do seu saber, não apenas na área do direito, mas também da gestão, da sociologia e da comunicação social, introduzindo uma visão interdisciplinar e, no caso das duas últimas disciplinas, trazendo à colação os interesses dos utentes da justiça e da imprensa, numa perspectiva diferente da dos profissionais do foro.
A almejada visão de 360º pressupõe também, como dissemos, a análise das diferentes questões que a reforma convoca, de natureza ético-política, técnico-jurídica ou gestionária. Essas questões não se cingem a um qualquer elenco fechado ou pré-definido de áreas de intervenção abrangidas pelo processo reformista. Há questões naturalmente incontornáveis, por traduzirem o núcleo essencial da reforma: o novo desenho do mapa judiciário, a especialização e o novo modelo de gestão, assente na proximidade e baseado na fixação de objectivos. Mas a concretização prática destes princípios basilares pode suscitar um sem-número de novas questões, na certeza de que a reforma judiciária será, em grande medida, o que os seus protagonistas fizerem dela.
Os temas abordados pelos autores satisfazem em larga escala o nosso desiderato, na medida em que traduzem análises muito diversificadas, tanto do ponto de vista das matérias como do ponto de vista do enquadramento, extravasando em muito as questões mais óbvias, mas sem as esquecer.
2. A rubrica “Debater” incorpora os artigos de grande fôlego, cujo denominador comum assenta na visão de conjunto que cada um deles apresenta – sem qualquer perda de densidade – e na procura de um rumo seguro para esta reforma. E dizemos “esta” reforma porque, para além do consenso há muito gerado acerca da necessidade de reformar a organização judiciária portuguesa, todos partem da premissa expressivamente sintetizada por Henriques Gaspar nos seguintes termos: «O País não pode “jogar” o “jogo” das reformas da justiça. Por isso, e independentemente do julgamento político sobre os méritos do novo modelo – que não é nem pode ser o nosso espaço de discussão – devemos estar conscientes que o estado da execução não permitirá reformulações que não sejam os ajustamentos que as circunstâncias, ditadas pela experiência, aconselharem ou impuserem».
O artigo do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça é, precisamente, o que vai mais longe na análise das condicionantes históricas e sociológicas que fundamentaram – e continuam a fundamentar – o processo reformista iniciado nos finais do século XX, tal como na caracterização dos princípios estruturantes da organização judiciária (da actual e da que a antecedeu, que o autor apelida de oportunidade perdida, ideia reiterada de forma mais ou menos contundente por Maria José Costeira e Conceição Gomes) e na análise crítica da sua aplicação prática. E logo adverte para a falta de definição de uma política de justiça – identificando apenas um programa, traduzido na enunciação dos objectivos da reorganização – a qual deveria ser objecto de um consenso alargado e o resultado de uma discussão aberta, participada e plural sobre a justiça que temos, que queremos, que devemos ter ou que temos possibilidade de ter.
Ao reflectir sobre as ideias-força da nova concepção de organização da justiça afirmadas como prioridades – a eficiência, a eficácia e a qualidade da justiça, que devem ser proporcionadas pelos ganhos decorrentes de novos critérios de administração e gestão –, alerta para os condicionamentos impostos pela natureza da actividade judicial, em que a eficiência, como valor isolado, nunca poderá ocupar um lugar central, e para o risco de instituição de um modelo de controlo dissimulado ou insidioso de juízes, pugnando pela redefinição dos conceitos «geneticamente ambíguos» (como «objectivos estratégicos», «objectivos processuais» ou «indicadores de medida»), de modo a evitar «concessões a ideologias subliminares de “parametrização” exclusivamente produtivista, poupando a justiça ao risco da transposição dos modelos de gestão empresarial».
O autor prossegue com a descrição do processo de implementação da nova estrutura judiciária e analisa criticamente o seu primeiro ano de vigência na perspectiva do órgão de gestão a que preside, sem fugir às questões delicadas: a existência de algumas dificuldades no acesso à justiça, os backlogs (que constituem nota dominante das secções de execução, apelidadas de bad bank para backlogs tóxicos), a generalizada escassez de funcionários judiciais, a necessidade de redesenhar as competências das secções de instrução criminal, os riscos da criação de tribunais de competência territorial alargada ao território nacional, a relação entre o CSM e os juízes presidentes e a inquietude motivada pela fixação de objectivos processuais e estratégicos, alertando com assertividade que não pode haver «confusão, identificação ou relação directa entre objectivos e a avaliação de desempenho individual».
Sem qualquer menoscabo para todas estas questões, destacamos o alerta lançado para a necessidade de uma verdadeira adaptação cultural dos «modos de pensamento e de interiorização de conceitos estruturais da actividade judicial», comum a outros sistemas judiciais, em especial a concepção isolacionista – e inteiramente ilusória – da independência, ironicamente referida como o «esplêndido isolamento». O que natural e coerentemente desemboca na premência de uma gestão dialogante e participada, que certamente contribuirá para a passagem da cultura de trabalho individualizado e isolado para a compreensão da integração em organização.
Porque a reforma também se faz por via da interiorização dos conceitos em que assenta, muitos deles inteiramente novos ou reformulados, não raras vezes desvirtuados na sua aplicação prática, de forma mais ou menos insidiosa, inclusivamente através dos erros de linguagem que vão ganhando terreno, por vezes traídos pela própria letra da lei, Moreira das Neves, juiz presidente do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, faz um exercício de rigor terminológico, não por uma questão meramente semântica, mas como um importante contributo para a referida necessidade de interiorização dos conceitos estruturantes da nova organização judiciária, muitos deles com acolhimento constitucional. Enquanto descreve com rigor a nova estrutura judiciária, aborda questões iminentemente práticas, como a inexistência de páginas electrónicas oficiais dos tribunais, há muito prometidas (em contraste com a celeridade com que a DGAJ colocou em funcionamento os denominados «espaço comarca» no seu portal electrónico, estando igualmente em funcionamento as páginas oficiais de cada uma das Procuradorias de Comarca) e os poderes do presidente do tribunal em relação à secretaria. Simultaneamente, pugna pela revisão do modo de definição dos objectivos estratégicos e processuais, designadamente para arredar o pendor administrativista que lhes parece estar subjacente, pela valorização do mérito, pela regulação consequente da reafectação de juízes a outras secções e de processos a outro juiz, pelo fim da dualidade de jurisdições e pela uma exigência de lealdade institucional aos decisores políticos.
Maria José Costeira, presidente da associação sindical dos juízes portugueses, apresenta-nos uma análise crítica da forma como foi preparada e posta em prática a actual organização judiciária, advertindo para a necessidade de reformar o modelo tripartido de gestão, por permitir uma clara interferência do executivo na gestão dos tribunais. Em seguida, foca a sua atenção na diferença entre a gestão dos tribunais e a gestão dos processos, que considera não estar devidamente interiorizada, no conteúdo e limites dos poderes dos juízes presidentes (e do próprio CSM) e, por consequência, do princípio da independência (interna) dos juízes, entendendo que não há uma percepção clara a seu respeito. Neste percurso discursivo aborda questões tão variadas como as instruções, ordens de serviço e provimentos do juiz presidente; os provimentos dos juízes; a nomeação de e delegação de poderes nos juízes coordenadores; a determinação/quantificação da abertura de conclusões; a identificação de processos concretos para tramitar; a realização de julgamentos e outras diligências fora do edifício onde a secção está sedeada; a apresentação de propostas para reafectação de juízes; afectação de processos e acumulação de funções.
Num tom mais académico, mas impregnado de vocação prática, Conceição Gomes analisa a cartografia da justiça introduzida pela actual organização judiciária, tributária de uma determinada racionalidade política sobre as funções dos tribunais, e critica a aposta no modelo de concentração, em detrimento do modelo de proximidade, tanto na vertente organizacional como na vertente cartográfica, por gerar maior dificuldade de acesso à justiça, sobretudo no interior do país, propondo a avaliação da reforma com um duplo objectivo: o ajustamento deste modelo no curto prazo e a construção de um modelo alternativo no médio prazo. Para além de censurar a falta de preparação da reforma e os problemas identificados na sua execução (mormente a desadequação de alguns edifícios e o colapso do Citius), destaca o défice de perspectiva sistémica, afirmando que «a reforma não repensou as funções instrumentais dos tribunais à luz de um sistema integrado de resolução de conflitos, como também não produziu um conjunto de diplomas que deveriam integrar o corpo legislativo de referência, como é o caso de toda a legislação inerente aos estatutos de magistrados e funcionários».
3. A rubrica “Debater” é constituída por seis artigos, cujas reflexões se circunscrevem a temas específicos, os quais, por isso mesmo, são analisados com maior detalhe. São seis grandes planos, ordenados tematicamente, que nos permitem observar os pormenores.
O primeiro desses artigos, da autoria do Professor Vieira Cura, responsável pela única cadeira leccionada em universidades portuguesas totalmente dedicada à organização judiciária, versa sobre um dos três pilares em que assentou a reforma e, por isso, seu sinal distintivo – a especialização – aí explicada com detalhe, sem escamotear o que poderá constituir o reverso dessa medalha – o afastamento da justiça relativamente às populações – e o que poderá debilitar o propósito legislativo – a falta de uma verdadeira especialização e de uma adequada formação, pelo menos nesta fase inicial, dos magistrados e funcionários.
Seguem-se dois artigos dedicados a duas das ideias-chave do novo modelo de gestão, ambos escritos em co-autoria, por pessoas com responsabilidades actuais nas respectivas matérias:
Ana Azeredo Coelho e Inês Moura analisam o percurso trilhado ao longo do ano 1 da reforma, tendo em vista a fixação de objectivos estratégicos e processuais para o ano judicial de 2015/2016, apelando à sua intervenção nesta matéria numa dupla qualidade: enquanto responsáveis pela gestão de uma das comarcas piloto, o que as confrontou com a questão com cinco anos de antecedência, e enquanto chefe e assessora, respectivamente, do Gabinete de Apoio ao Vice-Presidente e aos Vogais do CSM e, por essa via, representantes deste Conselho no Grupo de Trabalho para a Implementação da Reforma Judiciária, o que as levou a intervir directamente no processo que descrevem. Para além desta descrição, que inclui exemplos da variedade de objectivos fixados, as autoras perspectivam o futuro nesta matéria, relacionando-a com a determinação de valores de referência processual (VRP) e alertando para a necessidade de formação específica neste campo e para «a exigência de um esforço de adaptação a uma nova forma de estar na função, necessariamente menos individualista».
Artur Cordeiro e Gonçalo Magalhães, vogais do CSM, discorrem de forma mais detalhada sobre os valores de referência processual, que definem como indicadores da capacidade de resposta da magistratura judicial e que apresentam como uma ferramenta de gestão, a utilizar na afectação ou reafectação dos respectivos quadros e na avaliação do seu desempenho, necessariamente circunscrita ao aspecto da produtividade (o que, ainda assim, está longe de suscitar consenso), lançando ainda pistas acerca dos critérios que devem ser observados na sua fixação.
Os três artigos restantes abordam questões que, não sendo directa ou necessariamente atingidas pelo processo de reforma, devem ser repensadas à sua luz.
Entre essas situa-se o regime de avaliação do desempenho dos juízes (a par da avaliação do desempenho dos próprios tribunais, mais directamente visada pelo novo modelo de gestão, sendo certo que estas funções não podem ser confundidas), cuja reforma há muito vinha sendo reclamada por largos sectores do judiciário, mas que agora se tornou mais premente. Como refere Paulo Silva, Inspector Coordenador dos serviços de inspecção do CSM, as competências agora atribuídas ao CSM em matéria de nomeação de juízes presidentes, fixação de objectivos estratégicos e processuais e determinação de «valores de referência processual», enquanto «valores de produtividade calculados em abstrato por» juiz, posicionam as funções de avaliação do desempenho individual e do desempenho dos tribunais num ponto nevrálgico do sistema de justiça. No seu artigo, pugna pela recentralização das inspecções judiciais primacialmente no tribunal de comarca e subsidiariamente no juiz, contextualizando ali o desempenho deste e, simultaneamente, monitorizando-o ao longo do tempo e em tempo quase real, como um instrumento ao serviço da qualidade da justiça e de prestação de contas, tendo em vista a consolidação da confiança da sociedade. Neste contexto, realça a importância da relação entre o inspector judicial e o juiz presidente.
A gestão processual levada a efeito pelas secretarias judiciais sob a batuta dos juízes titulares dos processos, o case management, para usar um expressivo anglicismo, também não pode ficar indiferente à mudança de paradigma no modelo de gestão dos tribunais, ao court management a cargo dos juízes presidentes e do CSM. Dir-se-á mesmo que o sucesso deste depende, em grande medida, da evolução que se registe ao nível da prática judiciária. Como ensinava Agostinho da Silva, «é ilusória toda a reforma do colectivo que se não apoie numa renovação individual; ameaça a ruína a todo o movimento que tornarem possível a ignorância e a ilusão». É nesta perspectiva que Idalina Ribeiro e Maria Helena Silva, respectivamente juíza de direito e escrivã de direito na secção cível da instância local de Braga, analisam se e como a mudança do paradigma do modelo de funcionamento dos tribunais judiciais teve algum efeito nos modelos de organização e nos métodos de trabalho das unidades de processos e no tipo de relações estabelecidas entre os juízes de direito e os escrivães de direito, afirmando que «a liderança do administrador judiciário e dos escrivães de direito é determinante para o grau de implantação das alterações previstas para a nova organização judiciária ao nível da organização das unidades de processos», logo acrescentando que «o fluxo processual estabelecido entre a unidade de processos e o gabinete do juiz não prescinde, contudo, da liderança do juiz titular, atentas as relações de interdependência entre o trabalho desenvolvido por uns e outro». A este respeito não podiam deixar de abordar a questão, aparentemente melindrosa, da competência para emitir provimentos e ordens de serviço. Por fim, alertam que «a relevância da discussão em torno da organização do trabalho nos tribunais judiciais será sentida com mais acuidade quando forem chamados a responder [pelos] objectivos» processuais já fixados.
A rubrica termina com um artigo, da autoria de Felisbela Lopes, professora no Departamento de Ciências da Comunicação do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, dedicado às relações entre a justiça e a comunicação social, onde se abordam os problemas suscitados pelo segredo de justiça e a necessidade de criação de gabinetes de comunicação nos tribunais. O tema não é novo. Mas embora a autora não o afirme explicitamente, a reorganização judiciária é o terreno adequado para se repensar esta problemática, tendo em conta o papel atribuído aos juízes presidentes. Isso mesmo é demonstrado pelo papel desenvolvido, no âmbito da reforma judiciária de 2008, pelo Juiz Presidente do Tribunal da Comarca do Baixo-Vouga, Desembargador Paulo Brandão, no âmbito do mediático processo “Face oculta”, consensualmente apontado como um caso de sucesso no relacionamento do tribunal com os media e na qualidade do resultado informativo assim obtido.
4. Por fim, a rubrica “Divulgar” apresenta dois artigos com uma abrangência e alcance inteiramente distintos dos anteriores.
No primeiro, António Nolasco Gonçalves faz um relato da sua experiência como Administrador Judiciário da Comarca de Leiria, tanto no período preparatório que decorreu desde a sua nomeação até a entrada em vigor da nova organização, como no ano subsequente, descrevendo os problemas encontrados e as soluções adoptadas (ou a falta delas), em termos que, em grande parte, serão comuns às demais comarcas, reflectindo como está a ser aplicado o novo modelo de gestão. Do seu artigo importa destacar a descrição do que parecem ser problemas estruturais: a carência de funcionários de justiça, a inadequação de alguns edifícios e as questões orçamentais (não só as restrições financeiras, mas também a ausência de verdadeiros poderes de gestão orçamental por parte dos órgãos de gestão local).
No último artigo deste número, Paulo Rocha apresenta a perspectiva de um advogado sobre o resultado visível de apenas um ano da aplicação, no terreno, do que apelida de revolução na organização judiciária, baseada no somatório da sua experiência e da de vários outros intervenientes judiciais que consigo a partilharam, confessando o seu sentimento de frustração antecipada, temperada por algum descomprometimento, assente na consciência de que o que escreve poderá estar, se não de imediato, pelo menos daqui a alguns meses, destituído de sentido. Numa análise de largo espectro, discorre, sem preconceitos ou valorações pré-adquiridas, sobre o distanciamento da justiça face aos cidadãos, o êxodo rural e a subsequente desertificação do interior do país, a diminuição da entrada de processos nas zonas menos urbanas, o agravamento da morosidade processual e o mau funcionamento da especialização, procurando perceber se estes fenómenos são inerentes à própria reforma, se decorrem de factores exógenos (falta de recursos humanos e/ou materiais; imigração; envelhecimento da população; etc.) ou se traduzem apenas preconceitos infundados, assumindo sem rodeios que «é claramente muito mais relevante para a sociedade uma justiça eficiente do que fisicamente muito próxima, mas inoperante». Reflecte também sobre as incidências da reorganização judiciária no exercício profissional dos advogados, sem contornar a posição que a Ordem dos Advogados veiculou a este respeito da reforma. Numa análise mais circunstanciada, analisa o funcionamento de variadíssimas secções de norte a sul do país, num dado momento histórico (correndo o risco de parte daquela análise poder estar já ultrapassada, o que seguramente sucede em alguns casos), destacando os problemas sentidos na generalidade das secções de execução. Por fim, analisa e enaltece as virtualidades do funcionamento dos novos órgãos de gestão.
5. Apesar de muito diversificados, os temas abordados não constituem o alfa e o ómega da nova organização judiciária. Muitas outras questões já se levantaram e muitas mais poderão ser suscitadas no futuro. A par do debate que visa mais directamente o Ministério Público, foi ponderada a inclusão neste número da Julgar de outros temas e perspectivas, alguns já aludidos. A título de mero exemplo, mencionaremos três: o papel do Centro de Estudos Judiciários na formação inicial e contínua dos magistrados, tanto na vertente da gestão como na vertente da especialização, bem como na formação dos próprios órgãos de gestão; o papel do Ministério da Justiça no contexto da nova estrutura judiciária, em especial da DGAJ e da IGFEJ; a gestão da plataforma informática de suporte à actividade dos tribunais.
Por razões de vária ordem (desde os limites desta edição até à falta de disponibilidade das pessoas mais apetrechadas para discorrer sobre estes assuntos), a sua análise teve de ser remetida para outras sedes ou oportunidades.
De todo o modo, cremos que o objectivo está cumprido: a apresentação de um primeiro balanço (que vá para além dos relatórios de gestão entretanto apresentados), necessariamente provisório e contingente, mas nem por isso menos importante, até porque coloca a discussão num patamar diferente, que só pode ser o da procura de um rumo certo, sem tibiezas, para a reforma em curso.
Resta-nos fazer menção à coordenação científica deste número da Julgar, a cargo do subscritor do presente editorial e da Dra. Rute Sabino Lopes, juízes presidentes das comarcas de Braga e de Lisboa Norte, respectivamente, e formular os devidos e merecidos agradecimentos. Antes de mais aos autores, a quem se devem imputar os méritos deste número. Penhorados agradecimentos são igualmente dirigidos ao director da Julgar, pelo apoio que prestou aos coordenadores, acompanhando, aconselhando e esclarecendo todas as questões, numa atitude de permanente disponibilidade.
Artur Dionísio Oliveira