Aceitei, com muito interesse, o desafio que me foi lançado pela direcção da Julgar de coordenar um número da revista dedicado a questões jurídicas suscitadas pelos acidentes de viação. Trata-se, como se sabe, de uma das áreas tradicionalmente mais trabalhadas pela jurisprudência nacional, podendo legitimamente perguntar-se se ainda haverá algo de novo a aprofundar a seu respeito.
Paradoxalmente, ou não, a resposta é claramente afirmativa. Estamos perante uma realidade social – a dos acidentes rodoviários e suas consequências – que, pelo elevado (elevadíssimo)[1] número de acções judiciais a que dá origem, tem constituído, ao longo dos anos, um autêntico laboratório para a actividade de interpretação e aplicação do direito, assim como para o aprofundamento da dogmática jurídica da responsabilidade civil. Não será, assim, de estranhar, que, ciclicamente, uma revista como a Julgar retome a reflexão em torno das questões, antigas e novas, que o fenómeno dos acidentes de viação coloca ao Direito.
No presente número são, pois, revisitados alguns dos temas estruturantes da responsabilidade civil por acidente de viação. Por um lado, a problemática da conjugação entre o regime especial de responsabilidade objectiva e o regime geral de responsabilidade subjectiva, com destaque para a controvertida questão da aplicabilidade, neste domínio, da presunção relativa às actividades perigosas. Por outro lado, a delimitação da responsabilidade pelo risco do detentor do veículo, que assume particular acuidade a propósito da relevância a atribuir à culpa do lesado, sendo que – essencialmente em virtude das imposições do Direito da União Europeia, tal como interpretado pelo Tribunal de Justiça – se vem consolidando na jurisprudência mais recente dos tribunais superiores a aceitação da possibilidade do concurso ou concorrência de tais títulos de imputação.
Se a elaboração teórica em torno dos títulos de imputação de responsabilidade continua a suscitar múltiplas dúvidas e perplexidades, o mesmo sucede também no que concerne à determinação dos danos relevantes e à fixação da respectiva indemnização. Entre as inúmeras questões que mereceriam tratamento autónomo, ocupa lugar cimeiro a problemática da reparabilidade das consequências (patrimoniais e não patrimoniais) das lesões corporais, justificando-se, assim, que dois dos trabalhos ora dados à estampa se debrucem sobre o tema, um expressamente dedicado ao conceito de dano biológico e outro tratando, a par de outras questões jurisprudenciais, da reparabilidade do dano corporal. E justificando-se também que, no plano do direito processual, se publique artigo contendo uma proposta inovadora de produção autónoma de prova pericial, tendente a prevenir a instauração de acções judiciais ou, ao menos, a facilitar a via da conciliação judicial.
Também no domínio dos danos a ressarcir se está longe de alcançar uma orientação estabilizada quanto à relevância prática a atribuir aos, com maior ou menor precisão, denominados danos não patrimoniais reflexos ou indirectos. Sobre esta problemática se publica trabalho que apresenta uma proposta inovadora no sentido do reconhecimento autónomo do dano psíquico (da vítima secundária) por lesão de bens pessoais de terceiro (a vítima primária).
Em artigo assente essencialmente na prática jurisprudencial – e sob o título genérico de “questões atuais da responsabilidade civil por acidentes de viação” – abordam-se, de forma circunstanciada, e para além do já enunciado tema da reparabilidade do dano corporal, diversas outras questões (desde o problema da determinação do tribunal competente, ao tema das exclusões da cobertura do seguro automóvel obrigatório e às especificidades respeitantes ao seguro facultativo por danos próprios) que, repetidamente, vêm ocupando o labor dos nossos tribunais.
A jusante das acções directas de responsabilidade civil por acidente de viação, surgem nos tribunais numerosas acções de exercício do direito de regresso de seguradoras contra o responsável pelo acidente ou de sub-rogação do Fundo de Garantia Automóvel nos direitos do lesado. Não pode senão considerar-se surpreendente que, mais de cinquenta anos volvidos sobre a entrada em vigor do nosso actual Código Civil, se mantenham em aberto, a este respeito, tantas dúvidas interpretativas, como se dá conta em artigo que sobre a temática se publica.
Procurando alargar os horizontes a outros ramos do Direito, convocam-se, no presente número da revista, temas conexos de direito administrativo, de direito do trabalho e de processo penal. Concretamente, dá-se à estampa trabalho que analisa as principais questões que a sinistralidade rodoviária vem colocando à jurisdição administrativa, assim como as especialidades do respectivo regime em confronto com o regime geral civilístico. Publica-se também texto que descreve, sinteticamente, o tratamento jurisprudencial que vem sendo dado aos acidentes que merecem a qualificação simultânea de acidentes de trabalho e de acidentes de viação, assim como se publica trabalho relativo às questões actuais suscitadas pela investigação criminal de acidentes de viação, em especial no domínio da prova pericial.
Espera-se, deste modo, contribuir, não apenas para prosseguir o esforço de aprofundamento de temas tradicionais da doutrina e da jurisprudência nacionais, mas também para alertar para a necessidade de se repensarem as soluções tradicionais de direito substantivo, bem como as vias jurídico-processuais existentes, tendo em vista a realização da justiça em domínio socialmente tão relevante.
Lisboa, Dezembro de 2021
Maria da Graça Trigo
[1] No texto «Questões actuais de responsabilidade civil», in Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 27, 2019, p. 36 e ss., e apenas no que se refere ao Supremo Tribunal de Justiça, avancei com uma estimativa de que cerca de 10% dos recursos cíveis respeitem a acções de responsabilidade civil extracontratual, em especial de acidentes de viação, podendo essa percentagem chegar a duplicar se contarmos com os recursos em acções conexas, como sejam, entre outras, as respeitantes ao exercício do direito de regresso pela seguradora ou à sub-rogação nos direitos do lesado.