1. Na minha insignificante cultura literária, há um autor que ocupa um lugar destacado. É W. G. Sebald e era alemão. Tem vários livros publicados em Portugal. Um desses livros estava há muito tempo na minha estante mas nunca o tinha lido. Até este verão. Chama-se História Natural da Destruição: Guerra aérea e literatura . Começa por nos descrever, de forma muito tocante, como uma certa nação, num momento histórico muito preciso e nas várias décadas que já se lhe seguiram, desenvolveu o que parece ter sido um esforço concertado mas implícito, não-dito, para ignorar obstinadamente um episódio relevantíssimo que a marcou do modo mais fundo que se pode imaginar . Algo que nunca foi “transposto para o limiar da consciência nacional”, se tornou num “segredo bem guardado”, um “tabu” que, através de um “tácito acordo vinculativo” envolveu toda a gente de forma calada, um “radical agnosticismo” que ninguém quis e quer abordar. Era “um instrumento já sintonizado pela amnésia individual e coletiva, provavelmente condicionado por processos pré-conscientes de auto-censura”. Uma “apatia”. Tratava-se de “sanear ou remover um conhecimento incompatível com a normal compreensão das coisas”, “uma espantosa capacidade de auto-anestesia do ser coletivo”. Exprimia, porventura, a ansiedade de uma profunda “ausência de perturbação interna na vida íntima da nação”. O resultado é “um povo nitidamente cego para a história e falho de tradição”. Este deliberado e compulsivo segredo foi sempre mantido, “excluído da visão retrospetiva”, retirado das grande e pequenas discussões, nunca contribuiu para “um código de leitura pública”, e até a literatura o ignorou através de uma explícita omissão. A história não o regista. Nas cidades não há memoriais que o assinalem. As conversas e os próprios debates evitam deter-se nele. Pode admitir-se que assim foi porque, perante uma grande dificuldade se queria “começar de novo”, pois o episódio convertido em tabu foi “o fim horrendo de uma aberração coletiva”. Mais certeiro ainda pode ser o pressuposto de que toda essa recusa de memória foi a busca de um “catalisador”, através de uma “dimensão puramente imaterial”, para um novo projeto de poder e grandeza económica e política, a partir de uma negação.
Este livro causou-me, devo dizê-lo, a mais viva impressão e (vá-se lá saber porquê) associei-o rapidamente ao nosso assunto de hoje quando recebi o convite para participar neste painel. É certo que ainda o tinha bem vivo na memória, mas não foi por razões temporais que fiz tal associação. Desde então tenho convivido com a tentativa de dar sentido a estas duas coisas. E posso confessar que encontrei esse sentido. Julgo que encontrei os conceitos, a narrativa e a conclusão. Mas vou manter-me afastado da minha própria formulação.