Muito por pressão externa, vimos ultimamente tentando identificar os pontos críticos do nosso sistema de Justiça. No que toca à vertente da reacção penal poderíamos resumi-los parcimoniosamente a três: (i) o sistema não resolve questões de maior complexidade, sobretudo quando estejam em causa pessoas de elevado estatuto económico ou social ou, como eufemisticamente agora se diz, com “significativa competência de acção”; (ii) não dispomos de um regime de recuperação de activos minimamente eficaz; (iii) faz-se desproporcionada alocação de meios à resolução de questões de baixa e média densidade criminal e nem por isso se lhes dá resposta suficientemente dissuasora e atempada. A primeira das apontadas debilidades não é excentricidade nacional. O entorpecimento dos mecanismos de reacção penal através do (ab)uso artificioso de todos os instrumentos e garantias processuais existe, em maior ou menor grau, em todos os países que se reclamam estados de direito. Talvez entre nós se tenha atingido algum paroxismo, mercê da hipertrofia garantística surgida como reacção ao estado ditatorial que de forma perene retivemos na nossa memória colectiva. Nada, porém, que não se consiga, pelo menos, melhorar. Através, por exemplo, da livre apreciação, em audiência de julgamento, das declarações e depoimentos produzidos na fase de inquérito; através da compressão ou redução da actual fase de instrução; através da revisão do regime de recursos que, pelo menos no que respeita à subida ao Tribunal
Constitucional de decisões condenatórias, devem assumir efeito meramente devolutivo; através,enfim, da criação de tribunais de instrução criminal e de tribunais de julgamento especializados em matérias de especial melindre como o terrorismo, a corrupção e similares, o tráfico organizado de seres humanos e o tráfico internacional de estupefacientes. Assim o queira, em primeira linha, o legislador e não enveredem depois os aplicadores das normas pelos costumeiros afunilamentos interpretativos de inglório fim, como se verá já a seguir.
Ao segundo dos pontos críticos estamos agora a procurar responder, incentivando a realização de investigações financeiras e patrimoniais através do Gabinete de Recuperação de Activos criado pela Lei 45/2011, adestrando os magistrados do MP na aplicação do regime de perda ampliada adormecido nas páginas da Lei 5/2002 e propiciando a gestão racional e a atempada destinação dos bens apreendidos, através do Gabinete de Administração de Bens
(criado também pela supra citada Lei 45/2011). Revelou-se instrumento de boa valia para a definição dos objectivos a atingir e da forma de melhor os alcançar o “Projecto Fénix”, liderado pela PGR e co-financiado pela União Europeia. Auferimos da parceria com Espanha e sobretudo com a pragmática Holanda experiências e perspectivas que contribuíram para sedimentar ideias que vínhamos já cultivando as quais, por certo, nos enriquecerão. Vertemo-las num “Manual de Boas Práticas” e num “Repertório de canais dedicados de comunicação” a que nos preparamos para dar a maior difusão possível, em concerto com o Centro de Estudos Judiciários. A terceira das apontadas fragilidades radica menos em problemas legislativos e mais na repetição acrítica de práticas processuais inadequadas. Sejamos claros: desde meados dos anos 90 que o legislador vem abrindo portas à utilização das denominadas formas leves e consensuais de processo, dilatando os seus pressupostos de aplicação e impondo até, em moldes de meridiana clareza legislativa, a sua priorização em relação às formas de processo comum[1]. Debalde, porém: os operadores judiciários raramente têm cumprido tais objectivos, continuando a revelar
incompreensível apego às formas mais complexas, ritualizadas e morosas de processo. Para, paradoxalmente, virem depois a obter, volvido esforçado e labiríntico percurso, soluções de sancionamento em processo comum francamente comportáveis nos moldes da suspensão provisória ou do processo sumaríssimo. No que particularmente concerne ao processo sumário a situação é gritante. A “praxis” judiciária foi progressivamente enquistando, reduzindo a utilização desta forma processual, genuíno “ex libris” da Justiça célere que há muito se reclama, aos casos mais simplórios de condução sem habilitação legal ou de condução sob o efeito do álcool. E, mesmo assim, não sem cada vez mais novos e imaginativos argumentos de reenvio para o caldeirão do inquérito, quiçá na mira do processo comum. Um observador externo que se interessasse pela análise das más práticas que entre nós se fazem do processo sumário desaguaria inevitavelmente na conclusão de que os aplicadores da lei não se sentem confortáveis sem que entre eles e os factos delituosos se
interponham pelo menos seis meses de distância e meia resma de folhas A4. Que inseguranças se escondem nesta realidade? Será mais um reflexo do “medo de existir” que os filósofos nos vêm diagnosticando? A estranheza é tanto maior quanto, logo em Espanha, pelo menos desde 2002, uma resoluta “ley de enjuiciamiento de delitos y faltas” vem permitindo que se solucione em sete dias o que cá não se resolve em sete meses. Mais, ainda: superadas as naturais resistências do início, os tribunais espanhóis de turno julgam hoje em 48 horas qualquer das questões que infernizam meses a fio o quotidiano das nossas estruturas judiciárias. No que respeita às soluções de consenso previstas para as fases processuais anteriores à de julgamento, é confrangedor constatar o uso escasso, a timidez evolutiva das cifras de utilização do regime de suspensão provisória e do processo sumaríssimo. Incumprindo o projecto
que, após a revisão de 2007, o CPP fixou para o tratamento da pequena e média criminalidade, pois os pertinentes normativos (artºs 281º e 392º) assumiram um cunho claramente imperativo; incumprindo os ditames da Lei de Política Criminal para o biénio 2009/2011 (em cujo artº 16º se
impõe a opção pelas soluções mais consensuais e expeditas para tais tipos de criminalidade), e parecendo ignorar a directiva do PGR veiculada através da Circular 4/2010, os magistrados do Ministério Público continuam acriticamente a proceder como se vivessem em 1945 e tivesse acabado de ser publicado o Dec.-Lei 35007: findo o inquérito, ou arquivam os autos ou deduzem acusação em processo comum. Apesar, repito, de saberem que não é isso que o legislador pretende. Apesar de, indiscutivelmente, serem propícios a essas soluções mais de 70% dos casos criminais que apreciam em sede de inquérito. Mais detalhadamente, para que não restem dúvidas: entre 2000 e 2008 quase 60% dos processos foram julgados sob a forma comum; nesse mesmo período o processo sumaríssimo correspondeu a 4,3% dos introduzidos em juízo, tendo subido para 6,8% no ano de 2010; em 2010 a percentagem total de utilização do processo sumaríssimo e do processo abreviado foi apenas de 13,5% dos introduzidos em juízo (sem tomar em consideração os processos sumários); ainda em 2010 a percentagem de inquéritos suspensos provisoriamente no universo daqueles em que foram recolhidos indícios suficientes foi de 10,7%.
Passarei ao lado da consensualização na fase de julgamento, porque estranha ao tema deste encontro. Ainda assim, não posso deixar de assinalar que sob designações diversas (“guilty plea”, “conformidad”, “absprachen”, “verstandigung”, “patteggiamento”, etc.) esse tipo de soluções existe em quase todos os sistemas de “common law” e de “civil law”, porque instrumento imprescindível para o alívio do sistema judiciário, incapaz de responder com a celeridade e a economia exigíveis à enorme carga de solicitações das sociedades modernas. No caso português o pouco utilizado e mal interpretado artº 344º do CPP constituirá base legal bastante para os “acordos sobre a sentença” se se ultrapassar a atávica tendência para introduzir complexidades no sistema e para, invocando todo o tipo de temores (mormente os da doutrina), tomar como heresia qualquer leitura menos literal e restritiva das normas positivadas. Mas isso, repito (ainda em tom propositadamente confessional) são contas de outro rosário … Há, pois, que mudar. Porque só assim se cumprem os objectivos da lei, que para a pequena e média criminalidade claramente prefere as soluções processuais simples e expeditas. E porque só assim nos compaginamos com os tempos de crise que atravessamos e a escassez de meios que ela acarreta. Definitivamente: remeter para inquérito, sem necessidade, um caso que poderia e deveria ser julgado sob a forma sumária ou deduzir acusação sob a forma de processo comum quando se devia ter optado por suspensão provisória (mediante fixação de injunções de adequado recorte) ou por qualquer das sanções da vasta panóplia que o processo sumaríssimo já permite, é desperdiçar tempo e dinheiro que por demais escasseiam. É desviar recursos que deveriam, na Justiça, estar ao serviço de questões de maior relevo, dilatar no tempo a resolução
dos conflitos e retardar a realização da paz social. Sobretudo se se tiver em conta a bizarra prática judiciária de contínua movimentação do processo, na fase pré-sentencial, entre a secretaria, o gabinete do juiz e o do magistrado do MP. Esta excessiva circulação do processo foi já diagnosticada como um dos males do sistema de justiça nacional: aumenta desmesuradamente os tempos de resposta, distrai os magistrados com um sem fim de questões menores e, não menos importante, apouca, menoriza, o papel da secretaria e dessa importante peça da máquina judiciária que é o escrivão de direito.
Pois bem, como é que se mudam as coisas? Aplicando o processo sumário sempre que a detenção em flagrante delito exista, a medida máxima de cinco anos de prisão se afigure adequada e o módico de diligências instrutórias imprescindíveis se possa realizar no prazo de 15 dias após a detenção. Celebrando com as entidades pertinentes (INML, LPC, OPC, etc.) os protocolos necessários para que as perícias e exames que hajam de realizar-se possam ser efectuados em tempo consentâneo com esse mesmo prazo. E rentabilizando maximamente as soluções de consenso que o Código de Processo Penal prevê e em sintonia com ele privilegiam e impõem as leis de política criminal que vêm sendo publicadas e as directivas que a PGR vem emitindo para sua execução. É indispensável que os magistrados entranhem este objectivo como essencial e que se apercebam definitivamente de que esse é não só o caminho mais propício à obtenção de uma decisão em prazo razoável e ao conseguimento de tutela judicial efectiva como também o mais congruente com a grave situação
de carência de meios em que nos encontramos. Tal rentabilização passa por interpretações robustas das normas existentes, pré ordenadas ao alcance desses objectivos, superando o clima de atroz positivismo a que nos vimos confinando. Tanto mais quanto se trata de normas de carácter adjectivo, em que a literalidade interpretativa é menos premente. Passa, além disso, por firmeza na adopção destas soluções, persistindo nelas mesmo que não encontrem eco imediato no órgão jurisdicional ou aceitação por parte dos demais sujeitos processuais implicados. No Ministério Público, os diversos graus da cadeia hierárquica devem estabelecer esses objectivos estratégicos e os serviços de inspecção têm o dever de verificar se a actividade dos magistrados lhes dá cabal realização. O próprio Conselho Superior tem que emitir sinais claros de que será factor determinante na avaliação do desempenho e na atribuição da classificação a frequência e nível de propriedade na utilização de tais instrumentos. Temos que nortear-nos pela sábia advertência de Figueiredo Dias (“Acordos sobre a Sentença em Processo Penal”, pág. 38) de que “o Estado de Direito só pode realizar-se quando se torne seguro que o agente criminoso
será, no quadro das leis vigentes, perseguido, sentenciado e punido em tempo razoável com uma pena justa. Por isso um processo penal funcionalmente orientado constitui uma exigência irrenunciável do estado de Direito”.
O contrário disto é a perpetuação do juridismo estéril em que nos vimos afundando, para glória de uns poucos e desgraça de quase todos. Não tenhamos ilusões: ser competitivo passa por aqui. E recordemos que, quando escrita em chinês, a palavra “crise” compõe-se de dois caracteres: um representa perigo e outro representa oportunidade. Saibamos escolher o tom adequado!