3.2.1. De harmonia com a Convenção (art. 3.º, 2) uma infracção é de carácter transnacional quando:
(i) – tenha sido cometida em mais de um Estado;
(ii) – tenha sido cometida num só Estado, mas uma parte substancial da sua preparação, da sua planificação, da sua direcção ou do seu controlo tenha tido lugar num outro Estado;
(iii) – tenha sido cometida num Estado, mas envolva a participação de um grupo criminoso organizado que pratique actividades criminosas em mais de um Estado;
(iv) – ou tenha sido cometida num só Estado, mas produza efeitos substanciais num outro Estado.
3.2.2. Também de acordo com o texto da Convenção (art. 2.º, a) e c)):
a) a expressão “grupo criminoso organizado” designa um grupo estruturado de três ou mais pessoas, existindo durante um período de tempo e actuando concertadamente com a finalidade de cometer um ou mais crimes graves ou infracções estabelecidas na Convenção, com a intenção de obter, directa ou indirectamente, um benefício económico ou outro benefício material;
b) e a expressão “grupo estruturado” designa um grupo formado de maneira não fortuita para a prática imediata de uma infracção, cujos membros não tenham necessariamente funções formalmente definidas, podendo não haver continuidade na sua composição nem dispor de uma estrutura desenvolvida.
4. O conceito de tráfico de pessoas está plasmado no art. 3.º, a), do Protocolo e abrange: – o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coacção, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de uma situação de vulnerabilidade ou, ainda, à entrega ou aceitação de pagamentos ou de benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de exploração.
4.1. A “exploração” compreende, pelo menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a extracção de órgãos.Dos trabalhos preparatórios consta o esclarecimento de que a “extracção de órgãos” em crianças por razões médicas ou terapêuticas legítimas sem o consentimento de um dos pais ou do representante legal não deve ser considerada como uma forma de “exploração”.
4.2. De acordo com o texto do Protocolo (art. 3.º, b)) o consentimento da vítima na exploração não releva quando tiver sido empregue qualquer dos meios (coercivos ou enganosos) enunciados na alínea a).
4.3. Nos termos do art. 3.º, c), o recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de uma criança (isto é, de uma pessoa com menos de 18 anos, conforme na alínea d) se estipula) para fins de exploração são considerados tráfico de pessoas, mesmo se não tiver sido utilizado qualquer dos meios enunciados na alínea a).
5. De todos os conceitos empregues na mencionada definição de “tráfico de pessoas” parece-me merecedor de mais detida análise, pela maior abertura ou fluidez que ostenta, o de “abuso de uma situação de vulnerabilidade”.
5.1. Tal elemento não constava ainda da definição de “tráfico de pessoas” acolhida no “rolling text” apresentado à última revisão do “comité ad hoc” para elaboração dos textos da Convenção mãe e protocolos (documento A/AC. 254/4/Add 3/Ver 7). A par da “fraude”, “engano” e “abuso de autoridade” referia-se então, também, a “incitação” como modo de viciar a vontade da vítima. Ante a oposição de grande número de Estados ao emprego dessa expressão (por se considerar, nomeadamente, demasiado vaga, imprecisa, ampla e coincidente, no leque dos vícios da vontade, com os conceitos de “fraude” e “engano”), a Espanha propôs que, em sua substituição, se consagrasse a frase, tida por consensual, “abuso de uma situação de especial vulnerabilidade”. A proposta foi acolhida, embora deixando cair o adjectivo “especial” (que veio a aparecer, contudo, na lei portuguesa). Tal adjectivo não logrou, também, acolhimento quer na Convenção do Conselho da Europa relativa à luta contra o tráfico de seres humanos, aberta à assinatura em Varsóvia em Maio de 2005, quer na Decisão
Quadro da União Europeia de 19/7/2002: em ambos esses instrumentos consagra-se igualmente a fórmula “abuso de autoridade ou de uma situação de vulnerabilidade”.
5.2. A título de contributo para o farto labor jurisdicional que se adivinha, referirei desde já que dos trabalhos preparatórios da Convenção consta o esclarecimento de que por “abuso de uma situação de vulnerabilidade” deverá entender-se “toda a situação em que a pessoa visada não tenha outra escolha real nem aceitável senão a de submeter-se ao abuso”.