6. Também as noções de “trabalho forçado” e “serviços forçados”, igualmente empregues na já citada Convenção do Conselho da Europa de 2005 (Convenção de Varsóvia), haverão de integrar-se por recurso a vários instrumentos internacionais vigentes sobre tal matéria, tais como a Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. 4.º), o Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos (art. 8.º), a Convenção n.º 29 da OIT (1930), relativa ao trabalho forçado ou obrigatório e a Convenção n.º 105 da OIT (1957), relativa à abolição do trabalho forçado. Na aludida Convenção n.º 29 da OIT, em que veio a inspirar-se a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, classifica-se como “forçado ou obrigatório” “todo o trabalho ou serviço exigido a um indivíduo sob ameaça de qualquer tipo de pena e para o qual o dito indivíduo não se ofereceu de livre vontade”. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (Acórdão Van der Mussele contra a Bélgica, de 23/11/1983) considerou que a validade do consentimento deve ser avaliada à luz do conjunto de circunstâncias do pedaço de vida em apreciação.
7. Para encerrar esta breve incursão pela vertente repressiva do Protocolo importa anotar que:
a) cada Estado Parte é obrigado a conferir o carácter de infracção penal, no seu direito interno, aos casos de tráfico de pessoas, quando cometidos intencionalmente;
b) sob reserva dos conceitos fundamentais do seu sistema jurídico cada Estado Parte deve, além disso, conferir o carácter de infracção penal à tentativa de cometimento do crime de tráfico;
c) e deve também prever a penalização da cumplicidade e da instigação.
8. As medidas de prevenção estão inseridas no Capítulo III do Protocolo (artigos 9.º a 13.º) e são de diversa natureza.
a) Umas, de prevenção primária ou indirecta, comuns à restante criminalidade organizada, devem ser interpretadas e aplicadas em articulação com o art. 31.º da Convenção, mormente os seus n.os 5 e 7, também respeitantes ao tráfico de migrantes (sobre que incide um dos outros dois Protocolos Adicionais à Convenção de Palermo).
Com efeito, deve ter-se em consideração o facto de existirem muitas semelhanças entre os casos de introdução clandestina de migrantes e os de tráfico de pessoas: o desejo de migrar e de fugir a condições de carência é aproveitado quer pelos contrabandistas ou auxiliadores de migrantes quer pelos traficantes de pessoas.
Entre essas medidas de prevenção indirecta avultam iniciativas ao nível da comunicação social para prevenir potenciais vítimas, sensibilizando-as para o reconhecimento das práticas de tráfico, ou iniciativas para atenuar as condições sociais ou outras, geradoras de pressões favoráveis à migração e ao tráfico, tal como a melhoria das condições sociais e económicas das populações (art. 9.º, 4).
b) Outras, de prevenção secundária ou situacional, traduzem-se na adopção de iniciativas pedagógicas destinadas a desencorajar a procura de serviços, procura essa que promove a exploração do tráfico e, por conseguinte, a sua principal fonte de receita ilícita (art.9.º, 5). Neste domínio ganham especial relevo medidas desde a tipificação criminal da utilização de pessoas que se saiba serem vítimas de tráfico (já adoptada pela lei portuguesa – art. 160.º, 4 do C Penal), até ao extremo sancionamento dos clientes de qualquer tipo de prostituição (adoptada na Suécia). Creio, pessoalmente, que uma das soluções mais adequadas passa pela revisão das teses proibicionistas e pela correlativa legalização e regulamentação da prostituição: os mecanismos de controlo e fiscalização contribuirão, provavelmente, para a redução do elevado nível de opacidade do fenómeno, facilitando a denúncia e o despiste oficioso de situações de constrangimento e de abuso. Ultrapassado esse clima de clandestinidade estarão, além disso, criadas condições para que a prostituição seja entendida como actividade tributável ou fiscalmente relevante. É também considerada da maior importância a adopção de iniciativas que visem dificultar aos traficantes o recurso a meios de transporte convencionais e a entrada nos países, tais como o controlo eficaz da identidade dos passageiros e da passagem das fronteiras, a diminuição da vulnerabilidade dos documentos de viagem ou de identificação a actos de falsificação e o melhoramento das técnicas de detecção de tais falsificações (arts. 11.º, 12.º e 13.º).
9. Porque são grandes as afinidades históricas e culturais entre Macau e Portugal e, por isso mesmo, há grandes similitudes entre os seus sistemas jurídico – penais, passarei de seguida a uma brevíssima descrição da situação portuguesa actual, destacando as principais medidas mais recentemente tomadas.
9.1. Visando sintonizar-se quer com as exigências do Protocolo em análise, adicional `a Convenção de Palermo, quer com a Convenção do Conselho da Europa de Maio de 2005 (Convenção de Varsóvia), quer com a Decisão Quadro da União Europeia de 19/7/2002, a última reforma penal (Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro), alterou a tipificação do crime de “tráfico de pessoas”. Consta hoje do art. 160.º do Código Penal (integrante do capítulo dos “crimes contra a liberdade pessoal”, quando anteriormente constava do art. 169.º e fazia parte do capítulo dos “crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual”).
9.1.1. Os termos do art. 160.º respeitam a elevado nível, a meu ver, os standards dos referidos instrumentos de direito internacional, e as penas cominadas são de suficiente efeito dissuasório, oscilando entre três e dez anos de prisão para os actos básicos de tráfico e entre três e doze anos de prisão para actos qualificados em razão de menoridade da vítima. Faço notar que a lei portuguesa ultrapassa até as exigências mínimas da Convenção e do Protocolo, ao prescindir da verificação do requisito organizativo ou grupal. Isto é, o artigo 160.º do C. Penal é aplicável também a actos praticados por indivíduos isolados e não integrados em qualquer “grupo estruturado”.
9.1.2. São inovadoras disposições contidas nos números 4, 5 e 6 desse artigo 160.º, que tipificam como crimes, respectivamente, (i) a “venda” de menor, (ii) a utilização de serviços ou órgãos de pessoa de que o agente tenha conhecimento de ser vítima de tráfico (medida de claro alcance preventivo), (iii) e a retenção, ocultação, danificação ou destruição de documentos de identificação ou de viagem de pessoa vítima de tráfico.
9.1.3. O crime de tráfico de pessoas está expressamente inserido no conceito de “criminalidade altamente organizada”, com repercussão processual a nível de medidas de coacção e de meios de obtenção de prova (cfr. nomeadamente, os arts. 1.º, 1, n), 174.º, 5, a), 177.º,2, a), 187.º, 2, a) e 202.º, 1, b) do C. Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto).
9.2. Com o objectivo de proporcionar condições de segurança à vítima e de garantir o seu contributo probatório no processo penal, foi criado um regime especial de concessão de autorização de residência, que se manterá enquanto houver risco de a vítima, os seus familiares ou pessoas que com ela mantenham relações próximas serem objecto de ameaças ou ofensas praticadas pelos agentes do tráfico (Dec. Lei n.º 368/2007, de 5 de Novembro).
9.3. Autoriza-se a utilização, neste tipo de crimes, do instituto das “declarações para memória futura “previsto no art. 271.º do C. de Processo Penal.
Tal tipo de procedimento é, até, aconselhável como regra, tendo em conta a extrema mobilidade das vítimas (que não raro pretendem, após eclosão do processo, mudar de paradeiro e sumirem-se do alcance dos exploradores) e, também, a sua tendencial volubilidade face a pressões.
9.4. Por previsão expressa da Lei de Protecção de Testemunhas em Processo Penal (art. 16.º da Lei n.º 93/99, na redacção introduzida pela Lei n.º 29/2008, de 4 de Julho), pode ter lugar durante alguma ou em todas as fases do processo (incluindo, portanto, as declarações para memória futura prestadas em sede de inquérito) a reserva do conhecimento da identidade da testemunha (art. 16.º), objectivo que poderá atingir-se através de depoimentos ou declarações com ocultação de imagem ou distorção de voz, realizáveis por teleconferência ou por outro meio adequado (art. 19.º).7 Sublinho, contudo, que são previstas nessa Lei limitações em matéria de apreciação das provas recolhidas com reserva de identidade (art. 19.º).
9.5. A execução da investigação deste tipo de crime é da competência ou da PolíciaJudiciária, o órgão de polícia criminal por excelência no sistema penal português, ou do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, o órgão de competência específica vocacionado para a investigação das infracções ligadas aos fenómenos migratórios (art. 7.º, 4, da Lei de Organização da Investigação Criminal – Lei n.º 49/2008, de 27 de Agosto).
9.6. Além disso, a essas investigações é atribuída, por lei expressa, prioridade em relação à grande massa dos demais fenómenos criminais, o que implicará diminuição dos seus tempos de duração (art. 4.º, a) da Lei de Política Criminal – Lei n.º 51/2007, de 31 de Agosto). Tal prioridade abrange, além disso, a área da prevenção (art. 3.º do citado diploma).
9.7. Podem ser utilizadas, nas investigações do crime de tráfico de pessoas, técnicas especiais de investigação, tais como escutas de conversações telefónicas ou de conversações ou comunicações transmitidas por qualquer outro meio técnico (como o correio electrónico, por exemplo), bem como de comunicações entre presentes. Podem também ser utilizados meios tão intrusivos como os agentes encobertos, quer para fins de prevenção quer de investigação criminal (Lei n.º 101/2001, de 25 de Agosto).
9.8. Podem, além disso, ser utilizados, na repressão deste crime, os regimes especiais de quebra de segredo profissional (incluindo o bancário), de obtenção de prova e de perda de bens a favor do Estado, incluindo a denominada “perda ampliada” (“extended confiscation/forfeiture”), plasmados na Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro.
9.9. O crime de tráfico de pessoas é, por outro lado, infracção subjacente ao crime de branqueamento, estando suficientemente sedimentada a interpretação de que ambas as infracções coexistem numa relação de concurso efectivo (art. 368.º – A, n.º 2, do C. Penal).
9.10. Quando as vítimas do tráfico forem mulheres podem, também, beneficiar dos mecanismos reforçados de protecção legal instituídos pela Lei n.º 61/91, de 13 de Agosto, que estabelece um sistema de prevenção e de apoio, que institui um gabinete SOS para atendimento telefónico, que cria junto dos órgãos de polícia criminal secções de atendimento directo, que cria um regime de incentivo à criação e funcionamento de associações de mulheres com fins de defesa e protecção e que estabelece um sistema de garantias adequadas à cessação da violência e à reparação dos danos ocorridos.
9.11. Foi criado um Observatório do Tráfico de Seres Humanos tendo por missão a produção, recolha, tratamento e difusão de informação e de conhecimento respeitante ao fenómeno do tráfico de pessoas e a outras formas de violência de género (Dec. Lei n.º 229/2008, de 27 de Novembro). Pretende-se, por essa via, superar as dificuldades no conhecimento do fenómeno, especialmente resultantes da sua opacidade e da falta de colaboração das vítimas, com vista ao desenvolvimento de práticas de intervenção mais adequadas e eficazes, não somente ao nível repressivo como, sobretudo, ao nível preventivo e de protecção das vítimas.
9.12. Devo, por fim, assinalar que coexistem com o crime de “tráfico de pessoas”, no direito penal português, crimes de “lenocínio”, dirigidos à exploração sexual de outrem (art. 169.º do C. Penal) e de “burla relativa a trabalho ou emprego”, dirigido à exploração de força laboral (art. 222.º). Um dos tipos de lenocínio (n.º 1 do art. 169.º) abrange o simples fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição de outra pessoa, feito profissionalmente ou com
intenção lucrativa. Tem sido arguida a sua inconstitucionalidade (sobretudo por alegada falta de um bem jurídico a tutelar), porém sem sucesso.[8] O outro tipo de lenocínio (n.º 2 do art. 169.º) é qualificado em moldes quase inteiramente coincidentes com os do crime de “tráfico de pessoas”. Não sendo fácil a destrinça entre este último (art. 160.º), despido da referência à deslocação internacional, que anteriormente ostentava, pela reforma penal de 2007 (Lei n.º
59/2007), e o crime de lenocínio qualificado, começam a despontar interpretações no sentido de que a “exploração sexual” a que se destina o tráfico de pessoas representa uma circunstância agravativa em relação às situações de fomento, favorecimento ou facilitação a que se refere o lenocínio, assim merecedora de mais severa punição.
10. Como em todas as demais actividades criminosas que se caracterizam pela traficância, isto é, por transporem fronteiras e terem repercussão em mais de um Estado, é aqui particularmente importante a ideia de que uma acção de combate eficaz exige cooperação internacional e a utilização de sistemas que facilitem a colaboração e a troca de informação entre as autoridades competentes dos Estados interessados. De forma breve dir-se-á que a concepção, tradicionalmente reinante, de encerramento dos Estados em matéria de aplicação da lei penal (com hipervalorização do factor soberania), tem que ser paulatina mas seguramente superada por ideias de abertura à cooperação: ao desafio global que o crime hoje constitui só pode opor-se uma resposta também global por parte dos Estados.
10.1. Atendo-nos, na economia desta exposição, aos dois principais institutos da cooperação judiciária, a extradição e o auxílio judiciário mútuo, tal como vêm previstos no instrumento de âmbito universal que a Convenção de Palermo constitui, importará reter, resumidamente, o seguinte:
a) No domínio da extradição consagra-se, nomeadamente: (art. 16.º);
– o princípio da dupla incriminação;
– a consideração dessa Convenção como fundamento jurídico da extradição, quando o pedido tenha sido dirigido a um Estado Parte com o qual o Estado requerente não tenha celebrado tratado sobre essa matéria;
– o princípio da diligência no cumprimento e da simplificação de exigências em matéria de prova no que respeita ao cumprimento dos pedidos;
– a possibilidade de detenção pré- extradicional;
– os princípios “aut dedere aut judiciare” e “aut dedere aut puniere”;
– a obrigatoriedade de consulta do Estado requerente antes da recusa da extradição.
b) no domínio do auxílio judiciário mútuo consagra-se, além do mais (art. 18.º):
– a possibilidade de ter por base jurídica do pedido de auxílio essa Convenção, mesmo que não haja certeza da verificação dos requisitos de “transnacionalidade” e de “organização criminosa” mas, tão somente, “motivos razoáveis” para se suspeitar da sua existência;
– um largo e flexível catálogo de actos de auxílio;
– a impossibilidade de invocação do sigilo bancário como motivo de recusa do pedido;
– o afastamento da imperatividade do requisito de “dupla incriminação”;
– a possibilidade de transferência temporária de pessoas detidas ou em cumprimento de pena, para obtenção de provas noutro Estado Parte; – a obrigatoriedade de designação de “autoridades centrais” para receberem os pedidos de auxílio;
– a consagração do princípio “locus regit actum”, temperado embora, em certos casos, pela regra “forum regit actum”;
– a possibilidade de utilização de videoconferência para audição de testemunhas e peritos;
– a obrigatoriedade de fundamentação de qualquer recusa de pedido.
10.2. Cumpre, ainda, no âmbito descritivo dos mecanismos de cooperação, assinalar que:
a) O UNODC criou um instrumento denominado “redactor de pedidos de auxílio judiciário”, acessível no seu sítio web em várias línguas (entre os quais se conta já o português e, para breve, o chinês), bem como um repertório, também em suporte informático, das autoridades nacionais designadas em conformidade com a Convenção de Palermo para receber os pedidos de cooperação judiciária (extradição, transferência de pessoas e auxílio judiciário),
dar-lhes seguimento e resposta.
b) Em 2006 foi publicado, também pelo UNODC, um “guia de auxilio à luta contra o tráfico de pessoas”, actualizado em 2007 e em 2008, em diversos idiomas, entre os quais o chinês.
c) Em 18 de Dezembro de 2008 foi lançado pelo UNODC um instrumento (“toolkit”) em suporte informático, que constitui um manual de formação operacional avançada no domínio da protecção das vítimas do tráfico de pessoas, da investigação e da perseguição penal dos traficantes e da promoção da cooperação internacional. Esse manual destina-se, especialmente, a decisores políticos, membros de forças policiais, juízes, procuradores, responsáveis pelos serviços de apoio às vítimas e membros da sociedade civil que trabalhem, a diferentes níveis, sobre estes mesmos objectivos.
11. Facilmente se constata, pelo exposto, que os últimos anos têm sido férteis em iniciativas convencionais tendentes à facilitação do combate ao tráfico de pessoas. Cabe, em seguida, aos Estados diligenciar pela ratificação desses instrumentos de direito internacional e pela conformação do respectivo direito interno às suas exigências e orientações. Cabe-nos, por fim, a nós, intérpretes e aplicadores das leis, fazer com que as soluções acolhidas nos textos convencionais e de direito interno não se tornem letra morta. Para isso não será nunca demasiada toda a conjunção das nossas vontades e esforços!